Generosidade: Valor Intrínseco ao Investimento Social

16 de agosto de 2007

Escrito por Marcos Kisil, diretor-presidente do IDIS, o artigo foi apresentado pelo autor, em novembro de 2006, durante o Encontro Ibero-americano do Terceiro Setor, realizado no México.

Ouvimos neste encontro por diversas vezes as palavras filantropia, investimento social privado, justiça social. Mas como se coloca a generosidade no interior dessas palavras, conceitos e interpretações? Acredito que a generosidade é a virtude, que está por trás de uma decisão que nos impele a atuar como voluntários de ações sociais, a decidir investir um percentual do faturamento de nossa empresa em projetos socialmente responsáveis, ou ainda a colocar os próprios talentos em benefício do outro.

Tal como é definida nos dicionários, generosidade é a ”virtude daquele que se dispõe a sacrificar os seus próprios interesses em benefício de outrem”. A ela podem juntar-se outras palavras com significado próximo: magnanimidade (Aristóteles), caridade (teologia cristã), benevolência (Spaemann).

Segundo Yves de La Taille, a generosidade contempla pelo menos três atributos: o altruísmo (no ato generoso, o outro é o beneficiário da ação); o sacrifício (a pessoa possuidora de algo deixa de ser seu possuidor); e doação ao outro de algo que não lhe cabe por direito, mas que corresponde a uma necessidade concreta que deva ser atendida.

Além disso, o autor pondera que, nos debates filosóficos, as reflexões sobre a generosidade quase sempre visam a situá-las em relação ao conceito de justiça. Para Aristóteles, a justiça ocupa o topo da hierarquia das virtudes morais. Adam Smith, em “A Teoria dos Sentimentos Morais” (1759), observa que a falta da generosidade não é sancionada por nenhum castigo; já o ato injusto recebe tal sanção. Isso aconteceria porque enquanto a ausência de generosidade não acarreta por ela mesma nenhum mal, o ato injusto traz um mal à pessoa injustiçada.

Yves de La Taille detalha três diferenças básicas entre a generosidade e a justiça. Em primeiro lugar, a generosidade é intrinsecamente altruísta, isto é, direcionada ao outro, enquanto a justiça pode ser objeto de reivindicação pessoal. Assim, se uma pessoa tem o direito de exigir que ela mesma ou o outro sejam tratados de forma justa, não pode exigir ser tratada de forma generosa; pode apenas desejar que isso aconteça. Além disso, como a justiça visa sempre o bem-comum, inclui também o bem da própria pessoa que reivindica a justiça. Logo, tanto o auto-interesse quanto o interesse pelo outro estão presentes na justiça. Já na generosidade, somente o interesse pelo outro está em jogo.

Em segundo lugar, a generosidade pressupõe um sacrifício, ou um “dom de si”. Enquanto o ser justo não implica obrigatoriamente em privação, o ser generoso sempre se desfaz de algo que é possuidor. Para concluir, o autor agrega que a dimensão do direito corresponde ao terceiro diferencial entre esses dois conceitos. Se a justiça refere-se ao “sujeito de direito” – e, portanto, “todos os seres humanos” -, a generosidade contempla o “sujeito singular”.

Outro autor que discute a generosidade é André Comte-Sponville. Em “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, no capítulo sobre a generosidade, ele aponta essa virtude como a consciência da própria liberdade e a firme resolução de bem usá-la. “Ser generoso é saber-se livre para agir bem e querer-se assim. O homem generoso não é prisioneiro de seus afetos, nem de si; ao contrário, é senhor de si e, por isso, não tem desculpas nem as procura. À vontade lhe basta. A virtude lhe basta. (…) Ser generoso é ser livre de si, das próprias pequenas covardias, pequenas posses, pequenas cóleras, pequenos ciúmes…”, afirma.

E completa que a generosidade, como a maioria das virtudes, obedece ao primeiro mandamento evangélico: “Amar ao próximo como a si mesmo”, expresso em formas similares em religiões não-cristãs. “Por exemplo, se você amasse um estranho com quem se defronta e que sofre ou que tem fome, você ficaria sem fazer nada para ajudá-lo? Se você amasse esse miserável, você lhe recusaria o socorro que ele lhe pede? Se você o amasse como a você mesmo, o que faria? A resposta, que é de uma simplicidade cruel e louca, é a resposta moral e o que exige – ou exigiria – a virtude”, defende.

E assim chegamos a uma palavra importante para os cristãos: misericórdia. Mas não estamos falando de ações de misericórdia que conhecemos, e que muitas vezes assumem o papel de assistencialismo puro.

Vivi minha vida acadêmica durante os anos pesados de ditadura militar no Brasil e, como uma liderança estudantil, pude assistir ao mais completo desrespeito aos direitos humanos. Porém, também experimentei a presença de uma Igreja Católica solidária, e com misericórdia para com a situação vigente. No caso da Igreja Católica, ela desempenhou um importante papel de resistência ao regime militar, especialmente através de uma corrente mais progressista existente dentro da Igreja. Esta corrente inspirada pela Teologia da Libertação, e em atendimento a uma política de Direitos Humanos, apoiou o surgimento e desenvolvimento de um Movimento Eclesial de Base da Igreja Católica.

Assim, grupos comunitários, influenciados e criados pela Igreja passaram a apoiar o movimento sindical e outros movimentos sociais de diversas origens. Progressivamente, passaram da resistência ao regime militar a grupos reivindicatórios de atendimento às necessidades sociais, mas também da redemocratização do país. Influenciaram a própria Igreja a organizar-se através de diferentes pastorais com finalidades bastante concretas, tais como Pastoral da Terra (reforma agrária), o Conselho Indigenista Missionário (direitos da população indígena), a Pastoral da Criança (direitos da criança) ou as Comissões Diocesanas de Direitos Humanos.

A Igreja assumiu uma posição de vanguarda no processo de mudança do regime, seja denunciando abusos, defendendo os direitos dos excluídos ou organizando grupos sociais. Nesse mister destacaram-se líderes da Igreja, como o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, e bispos, como Ivo Lorscheider, Luciano Mendes de Almeida, Helder Câmara e Pedro Casaldáliga. Esses líderes religiosos progressistas deram o tom da Igreja, sobrepujando os conservadores.

Como bem descreve Jon Sobrino, esse momento da Igreja permite entender melhor o “princípio misericórdia” . Assim, ele demanda de cada ser humano uma ação, ou mais exatamente, uma “re-ação” diante do sofrimento alheio, ação essa motivada única e exclusivamente por esse sofrimento. É uma expressão do amor que está na origem de um processo, mas que, além disso, permanece presente e ativo ao longo dele, dá-lhe uma determinada direção e configura os diversos elementos dentro do processo.

Esse “princípio misericórdia” deveria orientar todo e qualquer ser humano, buscando alterar estruturas, e criando condições para o desenvolvimento pleno de cada ser. Isso implica numa mudança profunda de comportamento da Igreja, que passa a busca e a apoiar ações que transformam a sociedade.

A Igreja foi generosa no Brasil, ao apoiar movimentos pela doação de recursos coletados na Europa e dos Estados Unidos. Assim, gostaria de chamar atenção para o fato de, num encontro como este, não termos a participação da Igreja. Sabemos que ela recebe 2/3 das doações nos Estados Unidos, e aproximadamente 60% no Brasil. Sabemos que ela trabalha com as virtudes. Inclusive com as teologais: fé, esperança e caridade. E tem muito a dizer sobre caridade.

Gostaria de terminar, lembrando que, em minha experiência com a filantropia na América Latina, encontrei três tipos de motivação para os doadores:

Doadores por convicção: neles a generosidade, tal como descrevemos acima, o altruísmo e a misericórdia estão sempre presentes em qualquer ato de uso de seu tempo, talentos e recursos financeiros.

Doadores por conveniência: aqueles que doam porque é simpático fazê-lo. Ser tomado como um benfeitor da humanidade traz prestígio e oculta as mazelas realizadas em seu progresso econômico social, por isso eles doam.

Doadores por coerção: doam por exigência do mercado, dos colaboradores da empresa, das comunidades em que estão situadas e onde não atuam minimamente como cidadão, deixando de se responsabilizar pelos danos ambientais e sociais decorrentes de sua atuação.

Infelizmente, a maioria dos doadores atua ou por conveniência ou por coerção. Ainda são poucos o que atuam por convicção. Necessitamos atuar urgentemente para que os conceitos de Responsabilidade Social, individual ou coletiva, pessoal ou empresarial, não banalizem a conveniência e a coerção. Necessitamos atuar de maneira decidida, valorizando a convicção em torno de valores e virtudes. Temos que valorizar o altruísmo, a generosidade, a solidariedade. Temos que amar ao próximo.