Em que mundo você está investindo? 

29 de abril de 2020

 

* Por Marina Cançado
Pouco antes do coronavírus começar a se espalhar massivamente pelo mundo, aconteceu no Rio de Janeiro a Converge Capital Conference 2020, apelidada de CCC2020. A primeira edição do evento reuniu mais de 400 grandes empresários, investidores, filantropos junto com especialistas e atores-chave do mercado financeiro brasileiro e global, a fim de discutir qual o papel do capital privado na construção de um futuro sustentável.

A motivação para organizar o evento veio da clareza de que a década de 2020 trará desafios gigantescos a serem enfrentados pela humanidade, como: a necessidade de profundas adaptações diante dos cenários de mudanças climáticas; uma nova geração de desigualdades gerada pela economia digital; e, a maior recorrência de situações inesperadas tal como a que estamos vivendo agora com o coronavírus. Nesse contexto, os recursos governamentais e filantrópicos são fundamentais, porém insuficientes para endereçarmos as questões que serão impostas pela realidade dos próximos anos. Essa crise está deixando isso ainda mais claro.

Eventos extremos como a pandemia atual nos deixam cara a cara com nossos dilemas, potenciais e limitações. No caso do Brasil, de um lado, estamos assistindo o dilema do Governo entre evitar que a doença se espalhe rapidamente, e manter a vida econômica e as finanças públicas dentro de determinado equilíbrio. Por outro lado, se olharmos o que está acontecendo no Brasil em termos de doações, é maravilhoso. Profissionais do campo estimam que, em menos de duas semanas, já foram mais de 500 milhões de reais doados, principalmente com foco em garantir leitos e equipamentos para novas UTIs, ampliar o uso de testes e apoiar as famílias mais vulneráveis com itens de higiene e comida. Doações vindas de bolsos variados, algo tão sonhado por muito de nós que há décadas tentamos fomentar a cultura de doação no Brasil. Sem contar o que muitas empresas estão fazendo ao reverter suas plantas e produções para ampliar o acesso a alguns itens essenciais para a mitigação dos riscos de infecção e contágio. Em um momento de dor, a solidariedade falou mais alto, e, sem dúvida, quando olharmos para trás, vamos ver o papel crucial das doações durante essa crise.

Todavia, a despeito dos maiores e melhores esforços dos governos e dos doadores, os recursos filantrópicos e governamentais não vão dar conta de endereçar os efeitos tão amplos e profundos gerados globalmente em pouquíssimo tempo pela pandemia, os quais podem perdurar por um longo período. Se antes dessa crise, já se estimava uma lacuna anual de investimentos da ordem de 2,5 trilhões de dólares para se alcançar as metas para 2030 derivadas dos objetivos de desenvolvimento sustentável, as consequências imensuráveis do coronavírus vão ampliar de forma significativa os desafios sociais e econômicos, o que certamente vai aumentar drasticamente essa cifra a nível global.

A motivação de organizar a CCC2020 surgiu justamente da premissa de que, mais do que nunca, precisamos das empresas e do mercado financeiro se coordenando com a filantropia e com o setor público para mobilizar e direcionar capital para os temas cruciais da humanidade. Precisamos de todos os tipos de capital aprendendo a trabalhar juntos, de forma coordenada e orientada ao futuro, daí o nome e slogan do evento “Converge Capital Conference 2020: alinhando capitais com futuros preferidos”.

Compartilho nesse artigo alguns dos insights da CCC2020 por considerar que eles podem ser valiosos em nutrir reflexões e em contribuir para caminhos de ação.

 

Insight 1 | O futuro não está dado

Iniciamos a CCC2020 dialogando sobre o quanto temos por fazer para que seja possível alcançar as metas da Agenda 2030, um plano de ação global que visa garantir próximas décadas menos desiguais e mais sustentáveis. E o que acontece se não alcançarmos ou se atingirmos apenas parcialmente os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODSs)? Lá no evento, provocamos essa reflexão de cenários para a humanidade dependendo do alcance dos ODSs para relembrarmos que o futuro não está dado.

O futuro é um campo aberto de possibilidades. Não existe um futuro, existem cenários de futuros alternativos. Alguns deles já estão mais consolidados e têm uma maior probabilidade de virem a acontecer – e, por isso, esses cenários são chamados de futuro provável – enquanto outros cenários dependem das nossas escolhas e do nosso investimento de energia, recurso, etc. para terem maiores chances de vir a ser.

“The future could be heaven or it could be hell – and it doesn’t “happen to us”. We create it everyday by inaction or action”. Essa foi uma das falas de um dos mais importantes observadores de futuros e futurista de negócios na Europa, Gerd Leonhard, durante a CCC2020.

 

Insight 2 | Para fazer diferença no século 21, a competência mais importante a ser desenvolvida é aprender a pensar e a se mover a partir do pensamento de futuro

Como Jaqueline Weigel, uma das pioneiras de estudos de futuro no Brasil mostrou na CCC2020, estamos em um momento de transição, em que um mundo e um jeito de produzir e de viver estão morrendo, e outro está se configurando. “Que histórias contarão sobre a nossa época? Quem será você na lembrança das pessoas? Que tipo de humanos o planeta precisa?” – essas foram algumas das perguntas trazidas por Jaqueline durante sua palestra.

O ponto fundamental é que, se realmente queremos contribuir para a construção de um futuro menos desigual e mais sustentável, precisamos agir de forma diferente da que estamos acostumados. Em geral, as iniciativas sociais, as estratégias das empresas e as políticas públicas têm como ponto de partida os desafios atuais e buscam soluções a partir da premissa que a realidade futura será parecida com o momento atual, com algumas variações. As respostas acabam sendo um reflexo das limitações da nossa mente em enxergar possibilidades de mais longo prazo para a saúde, educação, economia, etc.

Segundo o Institute for the Future, 87% das pessoas não estão interessados ou não querem pensar no futuro. E aí está parte da contradição, queremos viver em um mundo diferente do atual mas não nos dedicamos e não nos capacitamos para pensar a partir do futuro. Isso nos leva a estar sempre dedicados a soluções que não vão nos levar para o futuro desejado, pois elas tentam resolver os desafios atuais com base nas nossas experiências e repertórios passados. Deixamos de lado todos os insights e contribuições que uma investigação de possibilidades de mais longo prazo poderiam trazer sobre o como endereçar aquele desafio. E, no fim, acabamos frustrados, pois, a despeito dos investimentos que fazemos, parece que não saímos do lugar e pouco mudamos na realidade atual.

Uma das principais mensagens da CCC2020 é a de que estamos entrando em uma fase de mudanças ainda mais aceleradas, em que uma situação inesperada pode mudar tudo – o coronavírus deixou isso bem claro. Não vamos conseguir efetivamente influenciar os próximos anos se continuarmos a replicar soluções antigas com pequenos aprimoramentos.

Construir futuros requer visão ampliada, sistêmica e um mindset focado em pensar o presente a partir do futuro, ou seja, ter clareza de quais poderiam ser os futuros alternativos para os temas/causas que nos importamos, e, com essa perspectiva, tomar as melhores decisões no presente,  concebendo soluções que tenham por base as possibilidades de futuro, e, por isso o potencial de nos mover para um cenário preferido.

Nesse século, se você quer fazer alguma diferença em qualquer área ou causa, se quer contribuir para um futuro de curto, médio ou longo prazo diferente, a chave é desenvolver a competência de pensar a partir do futuro.

O desafio é que nossos cérebros não foram treinados para pensar a partir do futuro. Inclusive, cientistas já mostraram que a glândula responsável pelas memórias é a mesma responsável por imaginar futuro. Então, se não driblarmos o automatismo do dia a dia, acabamos respondendo com base nas limitações do passado e do que já é conhecido pelo nosso cérebro.

Romper essa barreira e adquirir a competência de pensar orientado ao futuro requer tanto treinar o cérebro por meio de meditação e outras técnicas, como também aprender a utilizar a gama de metodologias e frameworks produzidos por cientistas, acadêmicos e estudiosos de futuros ao longo das últimas décadas para apoiar pessoas e profissionais a captar, compreender e sistematizar os sinais emergentes, com o propósito de se antecipar aos possíveis cenários que estão em curso, e também ter clareza sobre como influenciá-los com base em seu futuro preferido.

 

Insight 3 | O que o seu capital está nutrindo?

Dado que o futuro ainda está em aberto, onde colocamos nossa energia, nosso pensamento, nosso tempo, nossos capitais importa e muito. Você já parou para pensar em que mundo você está investindo? Essa pergunta foi o mote da CCC2020.

Ao consumirmos, ao investirmos, ao doarmos, ao empreendermos ou trabalharmos, todas essas ações estão fomentando um determinado tipo de mundo e de cenário futuro. Que mundo você está nutrindo? Em que futuro você está apostando?

Na CCC2020, antes de abordarmos o papel das empresas, do mercado financeiro e da filantropia, trouxemos a temática de futuro porque entendemos que sem uma visão clara de como você quer que seja o seu futuro de curto-médio-longo prazo e sem conseguir visualizar o mundo no qual você quer viver para esses horizontes temporais, acabamos reagindo com projetos e soluções baseadas no passado. Lembra que falamos que nosso cérebro não foi treinado para pensar o futuro? Para ajudarmos ele a entrar nesse mindset, quanto mais conseguirmos da forma e cor para as possibilidades de futuro, melhor! Conseguir visualizar nosso cenário preferido é essencial para a tomada de decisão de como investir seja como filantropo seja como investidor que busca retorno.

A primeira grande lição de cada a qual deveríamos nos dedicar se queremos usar nossos recursos para criar um mundo que tenhamos orgulho de deixar para nossos descendentes é trazermos consciência e responsabilidade para nossas escolhas de consumo, doação, investimento e trabalho.

Que mundo suas doações estão criando? Que mundo seus investimentos financeiros estão fomentando? O que você está privilegiando no seu consumo? Que futuro você está construindo com seu trabalho e energia?

Mais do que nunca, precisamos ter tanto a clareza do fruto que queremos gerar quanto a do que estamos semeando hoje para conseguir colher esse fruto nas próximas décadas.

 

Insight 4 | Forward Thinking Investing

Uma das premissas da CCC2020, que já estar clara pelos insights anteriores, é que sem se alinhamento entre alocação de capital e visão de um futuro sustentável, nunca chegaremos a vivê-lo.

Portanto, todo a lógica da conferência foi mostrar que precisamos conseguir entender os futuros alternativos, ter clareza de que cenário queremos fomentar, e a partir disso alinhar e alocar nossos recursos nos projetos, soluções, iniciativas que nos levarão para mais perto desse futuro.

Forward Thinking Investing é um mindset que integrar o olhar para futuros na forma de pensar uma empresa e um portfólio de investimentos. E, na minha visão, também deveria inspirar os filantropos, fundações e institutos a se repensarem e proporem soluções pensando no que as próximas décadas podem vir a ser. Talvez Forward Thinking Philanthropy possa nos preparar melhor para antecipar e criar os planos de mitigação para os próximos desafios.

A filantropia tem um papel de cobrir vazios deixados pelos governos e mercados, e lidar com as necessidades imediatas de sobrevivência dos mais vulneráveis. Porém, para influenciarmos o futuro e aumentarmos a probabilidade de um futuro sustentável, precisamos ir muito além. Inclusive, além da filantropia estratégica. Estratégia já não dá conta de responder a essa realidade acelerada e complexa, pois justamente não leva em consideração o olhar prospectivo. Bill Gates falou de uma pandemia global em 2014, alguns dos futuristas renomados apontavam para um cenário de doença surgindo na China e envolvendo o pulmão desde o início dos anos 2000.

Conectar o olhar e pensar de futuro com as decisões de investimentos – com ou sem fins de lucros – será essencial para fortalecermos e nutrirmos os caminhos que acreditamos para o mundo.

Essa crise é um chamado para reconstruirmos as bases sociais e econômicas a partir dos paradigmas desse século. Acredito que a filantropia tem um papel-chave em usar um capital que pode correr risco para construir capacidade e respostas orientadas ao futuro. Inclusive ajudando a nos preparar para os desafios e situações inesperadas que as mudanças climáticas vão trazer – só ainda não sabemos quando.

 

Insight 5 | O mercado financeiro do século 21

No mercado financeiro, olhar para o futuro, integrar na tomada de decisão financeira dimensões sociais, ambientais e climáticas não é utopia, tampouco moda. Na CCC2020, trouxemos representantes de algumas das principais organizações da Europa e dos Estados Unidos, para compartilhar como o mercado financeiro já está se transformando globalmente.

Faz cerca de 10-15 anos que começa a ganhar força o mercado de sustainable finance, ou finanças sustentáveis. Embaixo desse guarda-chuva encontram-se desde os investimentos que começam a integrar os fatores E(environmental), Social (social) e G(governance) até os investimentos de impacto, que surgem de uma intencionalidade clara de geração de impacto positivo junto de retornos financeiros, e mensuração objetiva. Segundo a Global Sustainable Investments Alliance, o guarda-chuva dos investimentos sustentáveis já representa mais de 30% do mercado financeiro global, percentual que cresce ano a ano. Dentro de 10 anos, projeta-se que não haverá mais distinção entre investimentos convencionais/tradicionais e investimentos sustentáveis, será um único mercado financeiro pautado em decisões que levem em conta não só as questões financeiras, mas também as sociais, ambientais, climáticas, etc.

Essa mudança está acontecendo no mercado financeiro, pois, aos poucos, está ficando claro que é preciso de análises sistêmicas e orientadas ao futuro para que se possam mapear e mensurar riscos ambientais, sociais, climáticos e outros que podem afetar o valor de um ativo, bem como, estimar seu valor e retorno futuro depende do cenário de futuro considerado mais provável ou plausível.

No Brasil, estamos 10 anos atrasados, principalmente porque os investimentos de impacto ficaram muito apartados das discussões e dos atores do mercado financeiro, e acabou-se criando uma série de mitos em relação a investimentos que não só levam em consideração a perspectiva financeira. Todavia, aos poucos, os exemplos e pressões de investidores, somado a diversas iniciativas, como a CCC2020, vão ajudando na ponte com o mercado financeiro e na integração desse novo olhar na forma de decisão de alocações, portfólios, investimentos, estratégias, produtos, etc.

 

Insight 6 | Os portfólios orientados para futuro

Alinhar e se comprometer a contribuir com a criação do seu futuro preferido – aquele no qual você gostaria de viver e tem capacidade de contribuir para que aconteça – passa por desenhar e pactuar uma política de investimentos alinhada a sua visão, valores e legado. Política que se reflita na escolha de investimentos orientados a seu futuro preferido, em todas as classes de ativo, por todo espectro de capital – do grant ao fundo de ação.

Orientar capital para o futuro que você quer co-criar e deixar para seus descendentes requer muito trabalho interno, de um lado, pois essas clarezas não se adquirem do dia para a noite. E, de outro lado, ajuda bastante poder contar com profissionais que o apoiem nessa jornada de tornar seus valores e causas em critérios para se avaliar e prospectar investimentos – com ou sem retorno financeiro.

Já está se tornando uma tendência fora do Brasil os portfólios de investimentos pensados e construídos para que todas as escolhas contemplem os valores, intenções de legados e visões de futuro de um indivíduo e família.

 

Insight 7 | A força da voz coletiva 

Uma filantropia orientada para futuro, um mercado financeiro orientado a futuro, empresas orientadas a futuro, no Brasil, todas essas transformações no direcionamento do capital privado depende da liderança inicial das famílias com grande patrimônio.

Na Europa, esse movimento e as mudanças começou por pressão da população – principalmente do países do Norte – que é muito mais educada e consciente, e, hoje já permeia as empresas e mercado financeiro, em geral. A ponto de muitas empresas brasileiras terem que repensar suas práticas e modelos de negócio pela pressão dos investidores estrangeiros nas gestoras, nos conselhos de administração e nas áreas de relações com investidor.

No Brasil, precisamos de um segmento que pegue a liderança e comece a demandar bancos, wealth managers, multi family offices, fundos, gestoras, executivos das suas fundações e institutos, a desenharem e oferecerem estratégias e produtos que considerem cenários de futuros para as questões sociais, ambientais e climáticas, abrindo a possibilidade para investidores e filantropos terem maior alinhamento entre seu capital e seu futuro preferido.

Também há um grande papel a ser desempenhado pelas famílias nos conselhos das suas companhias, por meio do “responsible and active ownership”, ou seja, trazendo preocupações e questões que fazem parte desse século para ajudar as empresas a se adequarem e repensarem diante dos futuros alternativos que temos pela frente.

 

Espero ter conseguido sintetizar as principais mensagens da CCC2020, e que, aos poucos, a capacidade de pensar a partir do futuro penetre na forma de se fazer investimento social e de se pensar os portfólios de investimento com fins de retorno, a fim de que possamos fortalecer as respostas e soluções que nos levarão para mais perto de um futuro que tenhamos orgulho de viver e de deixar.

O coronavírus inaugurou a década de 2020, mas, certamente, teremos muitas outras catástrofes e situações desafiadores nos anos pela frente. Espero que essas reflexões sirvam para você pensar o que você está fazendo em relação ao futuro – deixando ele vir, remendando o presente, antecipando-se, ou ativamente contribuindo para moldá-lo. Não há mais tempo para perdermos repetindo, revivendo e replicando o passado, que nos trouxe até aqui. Pós coronavírus, não voltaremos para o mesmo lugar ou para o mundo como o conhecíamos. Torço para que aproveitemos essa oportunidade para expandir nosso mindset e começarmos a trabalhar a partir do futuro que queremos construir e deixar.

 

* Marina Cançado é fundadora da Converge Capital, empreendedora e ativista,  praticante de foresight estratégico. Artigo especial para o IDIS.