Aplicando a tecnologia de forma humana: como a inteligência artificial pode potencializar a mudança social e nos relembrar sua importância

27 de outubro de 2025

Por Beatriz Barcellos, estagiária de projetos no IDIS

“Prometeu roubou o fogo do Olimpo e entregou aos homens. O fogo representa o progresso, a tecnologia (…) essa traz as suas próprias contradições: ao mesmo tempo é uma dádiva, mas também uma responsabilidade, um perigo. Nos faz refletir se estamos a utilizar da melhor maneira. Como podemos manejar essa contradição da tecnologia, para que possamos pensar na utopia e não na distopia?”. Foi com esse questionamento que Pedro Rossi, vice-presidente na The Global Fund for a New Economy, inaugurou a mediação do painel “Inovações e tecnologia: da distopia à utopia”, ocorrido na 14ª edição do Fórum Brasileiro de Filantropos e Investidores Sociais.

A dicotomia entre esses dois conceitos – ou talvez entre um conceito (utopia) e sua contradição (distopia) – serve como base fértil para discutir como a tecnologia, mais especificamente a inteligência artificial, nos faz ‘esperançar’, tema transversal desta edição do evento. Esse verbo nos encoraja não somente a manter nossas esperanças em tempos desafiadores, mas também a agir de forma estratégica, pedra angular para uma filantropia efetiva. Os palestrantes João Abreu, diretor executivo da ImpulsoGov, Camila Valverde, diretora executiva da Fundação ArcelorMittal, e Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú, nos ajudaram a dar concretude ao potencial dessas novas tecnologias para as áreas de saúde, educação e para a filantropia corporativa em si.

 

Veja a sessão completa em:

 

POTENCIALIDADES DE NOVAS TECNOLOGIAS

João Abreu abre a conversa demonstrando como essas inovações podem potencializar a base de dados do SUS (Sistema Único de Saúde), que, contemplando mais de 170 milhões de indivíduos em sua atenção primária, se consagra como a maior base de dados de saúde do mundo. A ImpulsoGov, aliada à iniciativa Juntos Pela Saúde, idealizada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e gerida pela equipe do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), executa a ImpulsoPrevine, plataforma digital que otimiza a base de dados do SUS.

Por meio do desenvolvimento de um software, as equipes conseguem identificar, por exemplo, quais crianças de determinado bairro ainda não receberam as vacinas indicadas para sua faixa etária, quais gestantes estão com o pré-natal em atraso ou quais mulheres na idade recomendada ainda não realizaram o exame Papanicolau. Com isso, a ferramenta fortalece o monitoramento ativo da população e contribui diretamente para a melhoria do desempenho municipal em indicadores de saúde. A partir disso, está em desenvolvimento uma funcionalidade que permitirá disparar mensagens de WhatsApp para esses indivíduos ou seus responsáveis, de forma a incentivar que usem seu direito universal, informando de maneira clara e acessível os passos para o agendamento do serviço recomendado.

Abreu especula que, com a implementação da inteligência artificial, além de permitir maior escalabilidade ao projeto (que atualmente se concentra em municípios do Norte e Nordeste do país), seria possível alcançar uma customização ainda maior do atendimento para a população brasileira. Seguindo o exemplo da realização do exame Papanicolau, comenta:

“Já temos hoje os dados e a tecnologia para que não digamos apenas ‘todas as mulheres de 25 a 69 anos devem fazer o Papanicolau’. Poderíamos olhar para o prontuário de cada paciente com IA e dizer: ‘Não é bem assim, essa pessoa deve fazer a cada ano, já que tem condições que a literatura médica atual já sabe que aumentam o seu risco de câncer de colo de útero; essa outra paciente pode ter uma frequência menor, já que possui menos risco’ (…) Conseguimos, com isso, hiperpersonalizar o cuidado de uma maneira que a saúde seja, de fato, acessível e que o SUS possa atuar de forma preventiva. Isso já não pertence à futurologia, é totalmente factível.”

Camila Valverde trouxe a perspectiva de como a Fundação ArcelorMittal, vinculada à maior produtora de aço do Brasil e do mundo, aposta no ensino da tecnologia para jovens, de modo a construir uma educação de qualidade através da abordagem autoral Liga STEAM. Essa perspectiva educacional engloba, de forma interdisciplinar e coletiva, as seguintes áreas do conhecimento: Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática. Trata-se de uma “(…) abordagem integrada de solução de problemas usando as habilidades [dessas áreas de conhecimento] e que é levada pelo professor desde o ensino infantil até o colegial. Todos sabemos como a infância é importante; tem essa frase que gosto muito que diz que a infância é um chão que pisamos a vida inteira”, comenta Valverde.

Para a implementação dessa abordagem, a Fundação oferece uma série de projetos: desde a formação de professores e a implantação do Prêmio Nacional Liga STEAM, que reconhece projetos de solução de problemas locais pensados em sala de aula, até a preparação de jovens para o mercado de trabalho, projeto que começou a ser implementado no início de outubro. Este último engloba 300 jovens de cinco cidades brasileiras, com o intuito de formação específica para áreas do mercado de tecnologia e inteligência artificial. Além do letramento digital e cursos de programação e IA, o curso oferece guia emocional para entrada no mundo corporativo. Como aponta Valverde, o conhecimento dessas tecnologias não é mais um conhecimento essencial para o futuro: é uma habilidade essencial para o presente.

O QUE NOS RESTA

Embora estes sejam exemplos tangíveis do potencial positivo da inteligência artificial, Eduardo Saron trouxe um contraponto de atenção de que a IA já não pode ser colocada como uma mera ferramenta. Essa tecnologia não apenas nos auxilia na tomada de decisões, mas é capaz de tomar decisões por nós; ela “(…) muda as relações humanas, as dimensões culturais e a nossa memória social”.

Ao longo de suas falas, Saron constrói a opinião de que o maior trunfo dessa tecnologia é o potencial de ressignificar o que é ser humano e suas relações, estabelecendo-se como um pressuposto para revalorizar uma ética relacional, cooperativa, interdependente, pautada na corporeidade e que incentiva a fraternidade.

Ralf Dahrendorf, estimado sociólogo, argumenta que a utopia é composta por cinco aspectos essenciais: a inexistência de mudança; a inexistência de conflito; a natureza anômala do imprevisível; a previsibilidade da ação; e o isolamento espacial. Vista desse modo, é possível argumentar que as distopias constituem não uma antítese, mas sim outra interpretação do que seria uma sociedade utópica. A dicotomia criada entre esses dois termos, embora ilustrativa, revela-se mais frágil do que parece à primeira vista. Assim, a inteligência artificial, apesar de potente para a mudança social, talvez encontre valor imensurável ao demonstrar, em toda sua perfeição, constância e universalidade, que pouco há de humano na utopia. Como uma estrela norte, ela nos guia, mas há conforto em sua impossibilidade: erros serão inevitáveis e novos desafios se revelarão e, como colocado por Saron, a filantropia é primordial em potencializar esses aspectos que nos fazem (e nos farão cada vez mais) humanos.


Fotos: André Porto e Caio Graça/IDIS.