Privatização Nutre Fundos Patrimoniais Filantrópicos

12 de maio de 2014

Em 2013, o professor Lester M. Salamon, diretor do John Hopkins Center for Civil Society Studies, e associados, expuseram os primeiros resultados de um estudo em curso sobre a formação de fundos patrimoniais filantrópicos a partir de processos de privatização — “Philanthropication Thru Privatization – Building Assets for Social Change”. O estudo, apresentado na Alemanha, e que conta com a participação do presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social – IDIS, Marcos Kisil, trouxe importantes lições sobre os processos de privatização no mundo e acrescentou ao debate uma pergunta capital: de quem é a propriedade de um bem público – rodovia, porto, aeroporto?

A resposta mais simples considera que os bens são do Estado e, portanto, todo e qualquer recurso arrecadado com seu usufruto, venda, concessão etc, deve ir para o Tesouro Nacional.

A resposta mais abrangente, porém, entende esses bens públicos como pertencentes à sociedade que, por meio de seus impostos e taxas, sustenta as estruturas existentes do Estado. Neste caso, a questão ganha uma nova dimensão, pois os recursos arrecadados podem vir a servir também para o fortalecimento da própria sociedade civil e suas organizações.

Buscando conhecer a fundo processos que seguiram a lógica acima, o estudo apresentou informações de mais de 500 organizações filantrópicas que tiveram fundos patrimoniais (endowments) criados como resultado de privatizações, distribuídas em 20 países. O total de ativos destas organizações sem fins lucrativos alcança um valor impressionante de US$ 127,5 bilhões.

Alguns dos casos mais interessantes detalhados no estudo são:

• A experiência mais antiga apresentada envolve a Fundação Volkswagen, na Alemanha. Quando terminou a II Guerra, a propriedade da empresa, que foi fundada durante o regime nazista e foi parte do esforço de guerra, foi alvo de debate pelo governo local, governo federal e sociedade civil. Em 1960 foi organizada a Fundação Volkswagen para ser a proprietária da empresa, sendo que 60% das ações da montadora pertenceriam à Fundação, 20% ao governo federal alemão e 20% ao governo do Estado da Baixa Saxônia. Em 1973, todas as ações da Fundação tinha sido vendidas ao mercado e os 20% do governo alemão foram vendidos nos anos seguintes. Hoje o governo da Baixa Saxônia detém aproximadamente 16% das ações que são negociadas em bolsa.

A Fundação Volkswagen foi a grande beneficiária da valorização e venda das ações, tendo hoje um capital investido em um fundo patrimonial com ativos na ordem de US$ 3,4 bilhões que são empregados em seu foco programático, Ciência e Tecnologia. Em resumo: a empresa foi privatizada, com a venda de 60% de suas ações ao mercado, em um processo no qual uma alternativa interessante foi desenvolvida para atender a demandas da sociedade civil e do governo local: a Fundação Volkswagen. Atualmente, a Fundação já não tem mais ações da Volkswagen e, portanto, nenhuma relação com a empresa, a não ser o nome.

• Em 30 de julho de 1990, o Parlamento italiano aprovou uma lei que teve grandes e positivas implicações para o desenvolvimento sócio-econômico do país. A lei “Amato-Carli” reformou o sistema bancário italiano como parte da reforma do sistema financeiro, e teve como premissa a criação de fundações que fossem acionistas dos novos bancos criados e que, posteriormente, com o sistema fortalecido, venderiam suas ações montando fundos patrimoniais com os recursos obtidos. No total, foram criadas 88 “fundações bancárias”, cujos ativos totalizaram US$ 65 bilhões. Duas dessas fundações – Cariplo e Companie San Paulo – estão entre as dez maiores do mundo quanto ao total de ativos dos fundos patrimoniais. Fundações originárias de privatizações de bancos também surgiram na Áustria (Sparkasse), Inglaterra (Lloyds TSB) e Nova Zelândia (Community Trusts).

• A República Tcheca destinou 1% dos recursos gerados nos processo de privatização na década de 90 para o estabelecimento de um fundo que financiou a formação de fundos patrimoniais de 74 fundações no país. Esta é uma das experiências que demonstra o potencial impacto desta possível estratégia para um governo preocupado com desenvolvimento sustentável de seu setor sem fins lucrativos.

No estudo, a maior parte das organizações analisadas apresentou desempenho, estrutura de governança e gestão acima dos padrões existentes em instituições semelhantes. No geral, são organizações com interesse comunitário local que colocaram os seus países no centro das discussões sobre o papel da filantropia global e desenvolveram tecnologias sociais de destaque.

O estudo encontrou evidências de que as concessões e privatizações podem ser instrumentos poderosos de estruturação de um setor filantrópico permanente em uma sociedade. A captura de recursos privados e a sua destinação de forma perene para propósitos sociais, culturais e ambientais se apresenta como uma estratégia de sucesso em diversos países. Recomendações para a efetivação deste processo são apresentadas no estudo e poderiam ser consideradas pelo governo brasileiro em suas próximas concessões.

Esta é uma rota que, se adotada, fortaleceria a sustentabilidade de organizações do setor sem fins lucrativos, tema que já faz parte da agenda nacional tanto da sociedade civil como do governo federal, na atuação da Secretaria Geral da Presidência da República.

O próprio Ministério da Fazenda, em apresentação do Ministro Mantega realizada dia 02 de dezembro do ano passado, estima em US$ 595 bilhões o total do investimento no Brasil que virá das concessões em infraestrutura nos próximos dez anos. Com base nisso é possível imaginar que a adoção de política semelhante no Brasil traria um extraordinário impacto no terceiro setor, importante parceiro do governo no desenvolvimento de políticas públicas mais eficazes.

Os resultados apresentados são encorajadores. A criação de fundos patrimoniais perenes, além de ter o potencial de originar novas estruturas para desenvolvimento de soluções para os problemas sociais e ambientais, garante que as organizações e estratégias tenham sustentabilidade no longo prazo, desafio atual de grande parte das organizações da sociedade civil brasileiras.

Para um governo que nas recentes manifestações recebeu críticas sobre sua incapacidade de prestar serviços que são obrigações constitucionais, como em saúde e educação, a presença de uma sociedade civil forte e atuante, não dependente de recursos governamentais, pode se traduzir em melhores soluções e serviços para a população, bem como em elemento promissor contra a corrupção e uso mais eficiente dos recursos públicos.

Artigo de autoria de Marcos Kisil, diretor presidente do IDIS, e  Paula Jancso Fabiani é diretora executiva do IDIS, publicado no Jornal Valor Econômico no dia 05 de maio.