História do Voluntariado no Brasil: de 1543 ao bicentenário da independência

Por Maria de Fátima Alexandre, Mestre em Administração, docente de cursos de especialização e pesquisadora do Núcleo de Estudos Avançados em Terceiro Setor (NEATS) da PUC-SP.

Desde sempre, no Brasil e no mundo, voluntário é a pessoa que ajuda outras pessoas sem exigir benefícios próprios diretos. O que tem mudado, e muito, é a forma de exercer o voluntariado e o entendimento da função social dessa ação. Na linha do tempo brasileira, identificamos grandes momentos que impactaram quem exerceria a atividade voluntária e como ela se daria no contexto da sociedade. 

O primeiro movimento voluntário revela ações marcadas pela benemerência, num amplo período que perdurou no Brasil Colônia, Império e Primeira República, até início do século XX. Pouco mais de quatro décadas depois do descobrimento do Brasil, a então colônia funda sua primeira Santa Casa, gerida pela Irmandade de Misericórdia, uma instituição de assistência criada em Portugal alguns anos antes, de acordo com os costumes e ensinamentos cristãos. O capitão-mor Braz Cubas criou a Casa de Saúde próxima ao Porto de Santos com o apoio de doações para o tratamento “da gente do mar e forasteiros” que necessitassem de socorro. 

Este marco do voluntariado no país, multiplicado em outras instituições de abrigo e assistência a necessitados, geralmente vinculadas à Igreja Católica, representava o ideário da caridade cristã, expressa na forma de assistência social. Frente à ausência de políticas públicas efetivas, as irmandades religiosas, mantidas em grande parte pelas famílias da elite, exerciam importante papel na assistência, em especial aos que estivessem “caídos em desgraça”, “desvalidos” e às crianças abandonadas. Refletindo os valores e costumes da época, o voluntariado era exercido predominantemente por mulheres, em tom religioso, paternalista e rigorosamente moralizador.  

O século XX trouxe mudanças sociais, econômicas e políticas que, provocando profundas transformações na sociedade brasileira, naturalmente fizeram evoluir o agir voluntário, acompanhando esses movimentos. A Cruz Vermelha e o Escotismo, movimento composto por voluntários, chegaram ao país no início do século XX dando um novo impulso à missão de ajuda ao próximo. A partir da década de 1930, o Estado passa a assumir papel mais atuante frente às necessidades da população, inicialmente pela proteção dos direitos do trabalhador e gradativamente gerando políticas públicas de assistência e bem-estar social. As ações voluntárias, embora ainda essenciais para o atendimento das necessidades básicas de significativa parcela da população, passam a ser vistas como suplementares e não mais um sistema paralelo à atuação do Estado. 

Com o golpe de 1964, o país mergulhava em 21 anos de ditadura militar, sendo os anos de chumbo os mais repressivos e violentos no embate criado entre Estado versus sociedade civil. Esse foi o período em que tivemos o chamado voluntariado combativo, com organizações de defesa de direitos civis, os movimentos estudantis e as alas progressistas da Igreja Católica, alinhadas com a Teologia da Libertação, lutando contra a desigualdade e as injustiças sociais. Traziam grandes questionamentos sobre o papel da sociedade frente às causas sociais e à garantia de direitos humanos, ao mesmo tempo que atos institucionais e outros instrumentos do governo procuravam reprimir e centralizar o poder.

Esse cenário foi se modificando a partir da década de 1980 com a expansão das organizações do Terceiro Setor e com a Constituição de 1988, fortalecendo a sociedade civil e sua capacidade de participação cidadã. Iniciava-se a construção de um novo voluntariado, mais crítico em relação às ações de benemerência e mais disposto ao alinhamento com o Estado face à complexidade e o tamanho dos desafios, especialmente os ligados à imensa desigualdade social brasileira. O setor empresarial, chamado à mobilização pelos conceitos emergentes de Responsabilidade Social Empresarial, também estruturou seu voluntariado organizacional, estimulando os colaboradores à participação em ações sociais com a parceria de organizações da sociedade civil. No final do século, a Pastoral da Criança, com seus líderes comunitários contribuindo efetivamente para a queda da mortalidade infantil e a Ação da Cidadania Contra a Fome, do sociólogo Betinho no IBASE tiveram papel expressivo na mobilização nacional: todas as pessoas poderiam se sentir solidárias e aptas a participar da mudança social.

Na virada do milênio, a cultura de um novo voluntariado foi fortalecida pelos Centros de Voluntariado do Conselho da Comunidade Solidária, num esforço nacional para mostrar que o voluntariado não é acionado pelo sentimento de culpa, mas que o exercício de cidadania que ele proporciona pode trazer prazer e ser uma atividade qualificada e eficiente.

Decorridos 22 anos do século XXI, os desafios sociais continuam crescentes e, muitas vezes, nos pegam de surpresa, como o isolamento social causado por uma pandemia que exigiu que os voluntários encontrassem novas formas de acolher quem foi mais atingido. Além dos desafios atuais, não sabemos o tamanho dos que nos esperam no futuro, mas sabemos sim que voluntários estarão presentes doando sua energia, tempo e talento na construção de novas relações até que todos, sem exceção, possam exercer o seu direito a uma vida plena.

A Pesquisa Voluntariado no Brasil 2021, em sua terceira edição, legitima o trabalho de milhares de voluntários na construção de um Brasil melhor, tanto no presente, quanto para as gerações futuras.

Este artigo integra uma série de conteúdos escritos à convite dos realizadores da Pesquisa Voluntariado no Brasil 2021, com intuito de analisar e enriquecer os achados do estudo. Não nos responsabilizamos pelas opiniões e conclusões aqui expressadas.

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