por Paula Lottenberg e Aline Herrera
Você sabe o que é grantmaking? A prática tem se destacado no campo do Investimento Social Privado como um caminho para a potencialização dos recursos investidos nas causas e projetos sociais. Conheça aqui todos os detalhes sobre o modelo!
O termo se refere a uma estratégia de atuação do campo da filantropia que envolve o repasse de recursos financeiros para organizações e projetos sociais já existentes. Desta maneira, o investimento social amplia as fronteiras de atuação para além do entorno do financiador, como seria com a criação e execução de projetos próprios.
Além de reduzir os custos financeiros e técnicos para as empresas e organizações financiadoras, a prática de grantmaking é capaz de potencializar o Investimento Social Privado e impacto. Isso ocorre porque a descentralização dos recursos passa a contemplar uma diversidade de causas e comunidades, promovendo, inclusive, iniciativas em regiões e localidades menos estruturadas do país.
Pensemos, por exemplo, num doador interessado em investir em determinada causa, com um recurso disponível de R$150 mil. Se esse doador decidir por criar um novo projeto, esse recurso seria consumido em grande parte entre as etapas de estruturação e despesas operacionais relacionadas ao início de um novo programa, com pouca vazão para o impacto de ponta. Além disso, todo o recurso estaria concentrado em um único projeto, com atuação e beneficiários muitas vezes limitados geograficamente.
Já se esse mesmo doador optar pelo grantmaking, esses R$150 mil seriam repassados para organizações da sociedade civil, podendo virar dois apoios de R$75 mil ou cinco apoios de R$30 mil. Como as organizações que receberiam os repasses já são estruturadas, quase a totalidade do recurso se destinaria para a execução dos projetos escolhidos, potencializando a atuação e a abrangência daquele investimento e, consequentemente, seu impacto na sociedade.
As organizações beneficiárias são selecionadas a partir de um criterioso processo de análise – que pode se dar por editais abertos, cartas convites ou outros meios. Também é comum, na prática, a relatoria de utilização do recurso, através de ferramentas de Monitoramento e prestações de contas. Dessa forma, o doador garante que o investimento está voltado para o impacto e sendo gerenciado por equipes que tem expertise na causa escolhida.
Este incentivo estratégico, mais do que repasse financeiro, é um ato de encorajamento às organizações da sociedade civil (OSCs) que desenvolvem soluções reais para as comunidades e causas com as quais atuam. Assim, as organizações firmam-se como protagonistas de seu meio, proporcionando resultados mais assertivos aos beneficiários.
O grantmaking estimula que as iniciativas sejam cada vez mais aperfeiçoadas em níveis técnicos, de abrangência e de impacto, impulsionando um desenvolvimento comunitário mais sustentável, justo e inclusivo.
Surgimento do Grantmaking como estratégia de doação
O grantmaking surgiu junto com a ascensão da filantropia moderna no final do século XIX, provocada pela crítica social da doação de quantias muito pequenas e sem foco para organizações beneficentes.
Essa nova forma de investimento social foi constituída pela criação de fundações inovadoras de famílias como Rockefeller e Ford que enriqueceram com as indústrias siderúrgica, petrolífera, ferroviária, telegráfica e automobilística.
Para receber as doações em larga escala dessas fundações, as instituições sociais começaram a adotar métodos de gestão profissional e colocaram como foco de seu trabalho a melhoria das condições sociais. Essas novas práticas tiveram impacto de longo prazo na forma de fazer filantropia e na educação, cultura, ciência e saúde pública em todo o mundo.
Esse momento histórico também foi marcado pelo desenvolvimento das doações e do voluntariado nos Estados Unidos, impulsionados pela Primeira Guerra Mundial. Durante esse período, os americanos doaram mais de US$400 milhões à Cruz Vermelha, gerando uma democratização das doações, incluindo também a classe média.
Grantmaking no Brasil
Historicamente, observamos como prática do investimento social brasileiro mais agentes executores de seus próprios projetos do que financiadores de organizações da sociedade civil. Contudo, em 2020, o Censo GIFE registrou, pela primeira vez, que o volume de recursos doados (47%) foi superior aos executados pelos próprios financiadores (42%). Foram R$2,5 bilhões doados a terceiros, sendo R$2 bilhões para iniciativas de enfrentamento aos efeitos da pandemia de Covid-19, indicando que este foi um acelerador para novos modelos de filantropia e concessão de recursos.
O resultado demonstrou que o campo do investimento social pode atuar de forma solidária e ágil na resposta a situações emergenciais. Contudo, esse dado não indica necessariamente que as empresas, institutos e fundações estão atuando mais como grantmakers, uma vez que não é possível saber o quanto desse formato de doações foi incorporado às estratégias permanentes das organizações.
Nesse sentido, outro dado importante do Censo GIFE é o número de investidores sociais essencialmente financiadores, ou seja, aqueles que destinam mais de 90% do orçamento à doação para terceiros. Em 2020, apenas 16% dos respondentes foram classificados como essencialmente financiadores, praticamente o mesmo patamar de dez anos atrás e com queda de 7% em relação a 2018, apesar do acentuado crescimento no volume de doações em razão da pandemia.
Os doadores institucionais têm preferido alocar os seus funcionários na administração direta de programas próprios, dedicando-se a uma visão de redução dos riscos que poderiam existir com o repasse de recursos para terceiros. Nesse caso, a ausência de ações de grantmaking pode ser explicada principalmente pela falta de confiança nas organizações da sociedade civil.
Essa perspectiva faz com que as práticas de repasse de recursos hoje sejam bastante limitadas, normalmente vinculadas a financiamentos pontuais a projetos com prazos pré-definidos de 12, 18 ou 24 meses e com alto nível de controle e exigências para as prestações de contas.
No entanto, esse alto nível de controle sobre o recurso vem se mostrando cada vez mais infundado. Uma pesquisa global da Eldeman sobre confiança e credibilidade, realizada com mais de 36 mil respondentes em 28 países indica que 60% dos respondentes confiam nas ONGs e que essas, em conjunto com as empresas, são as instituições mais confiáveis pela população. O nível de confiança se potencializa quando esses dois agentes trabalham juntos, indicando que a parceria deve ser transparente e sólida e que se há alguma desconfiança das empresas, essa não se justifica.
Mudanças na prática de grantmaking
Desde a pandemia, o debate sobre as práticas de grantmaking tem ganhado espaço e importância em temas como apoio institucional e confiança, que se apresentam como desafios a serem superados e aspectos a serem desenvolvidos.
Nas experiências de ações emergenciais, as formas de repasse dos recursos mudaram: aconteceu um movimento de maior flexibilidade, simplificação de processos, menos controle e mais autonomia para as organizações da sociedade civil do que normalmente. Nesse momento o foco passou a ser a resolução rápida de problemas. Para isso, algumas organizações investidoras desenvolveram instrumentos jurídicos mais simples, flexibilizaram processos e protocolos, agilizaram as aprovações internas e o repasse de recursos, aumentaram o prazo para prestação de contas, diminuíram o rigor técnico no monitoramento e deram maior liberdade para realocação de recursos nas rubricas orçamentárias.
Utilizando-se da metáfora de Vu Le, especialista em organizações sem fins lucrativos, fazer um bom projeto é como assar um bolo: para garantir que o resultado seja satisfatório não basta pagar pelos ingredientes, é necessário também pensar na eletricidade, funcionários da padaria, e todos os outros custos envolvidos.
Outro ponto relevante nesse mesmo sentido é a discussão de que mudanças permanentes em agendas sociais complexas, como é o caso do racismo, machismo, e a inclusão de pessoas com deficiência (PCDs) não são possíveis apenas com apoios de projetos de curto prazo. Nesse sentido, destaca-se que um grantmaking efetivo tem caráter de médio a longo prazo, a exemplo do The California Endowment, que investiu 1 bilhão de dólares ao longo de 10 anos em 14 bairros de Los Angeles para melhoria da saúde na região.
Grantmaking participativo: os beneficiários no centro
Existe hoje uma busca maior pela prática do grantmaking participativo, que consiste no compartilhamento ou transferência do poder de decisão sobre a gestão dos recursos doados pelos filantropos e investidores sociais às iniciativas e organizações beneficiárias.
Essa perspectiva parte do reconhecimento de que as pessoas afetadas pelos problemas de determinadas comunidades, possuem legitimidade para falar de suas vivências e assim determinar quais são as prioridades para o uso dos recursos financeiros que lhe são ofertados.
Algumas práticas são aceleradoras dos processos de grantmaking mais participativo, sendo elas:
- Reafirmação de valores;
- Escuta de feedback dos beneficiários (grantees);
- Adoção de uma abordagem de aporte equitativo;
- Resposta a influência de grupos ou pares e;
- Reação a crises mundiais e políticas.
A adoção desse modelo também passa por uma mudança nos processos de Monitoramento e Avaliação, que passam a ser menos documentais, feitos por relatórios, e mais pautados na confiança e no diálogo, promovendo uma interlocução entre financiadores, instituições financiadas e beneficiários.
Fazer com que os investidores sociais brasileiros mudem suas estratégias de doação e da operação do grantmaking não é uma tarefa simples. Há ainda barreiras, principalmente no que diz respeito às políticas orçamentárias e a aversão ao risco dos investidores. Ainda assim, a prática vem crescendo significativamente nos últimos anos e seus ganhos vêm superando esses entraves.
O foco maior em repasses de recurso de forma mais democrática entre as regiões do país, orientada para transformações sociais de longo prazo e consolidando uma visão de parceria e diálogo entre as organizações envolvidas num modelo de financiamento flexível e plurianual é um caminho para que os repasses gerem impacto social de forma mais efetiva.
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