Falta de coletividade: o grande ‘nó’ a ser desatado pela (e na) filantropia

Por Daniel Barretti, gerente de projetos do IDIS

 

“Qual a diferença entre viver em um mundo que é uma bagunça e em um mundo que está bagunçado?”. Foi assim que Philip Yun, head do Global Philantropy Forum, iniciou a mesa de abertura intitulada ‘Filantropia desatando os nós do mundo’, durante o Fórum Brasileiro de Filantropos e Investidores Sociais 2024.

 

A ideia é que a sociedade não é uma bagunça em essência, mas sim que a humanidade criou e vive uma grande bagunça planetária. A parte positiva disso é que a bagunça, portanto, é passível de ser arrumada, e a filantropia pode e deve ter uma importante contribuição para isso. Para tanto, ações filantrópicas devem ser ágeis em compreender os atuais desafios e propor soluções para eles na mesma velocidade com que aparecem diante de nós.

Dentre os muitos significados da polissêmica palavra ‘nós’, as falas dos palestrantes apontaram para a ausência de coletividade – talvez o principal desafio com o qual temos de lidar na sociedade contemporânea. Sergio Fausto, Diretor Geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, exemplifica:

“Espaços que deveriam ser plurais e democráticos – a começar pelo nosso congresso – estão longe de serem espaços que privilegiem o debate e o interesse público”.

O ‘nó’ da ausência de coletividade é aquele que implica na falta de diálogo, de pluralidade de pessoas, ideais, habilidades e práticas.

Para Renata Piazzon, Diretora Geral do Instituto Arapyaú, um dos ’nós‘ prioritários a serem desatados na atualidade é o da agenda climática. Entretanto, ele não anda sozinho.

A problemática ambiental está imbricada em uma extrema carência de senso coletivo, onde prevalece o falso dualismo homem-natureza. Segundo a palestrante, a filantropia deve, primeiramente, compreender as questões do clima a partir de uma perspectiva de desenvolvimento integrado onde, por exemplo, ondas de calor, seca e alarmantes focos de incêndio, não sejam uma pauta restrita ao meio ambiente, mas também à agriculta, à saúde pública e à economia. Afinal de contas, é notória a interrelação entre os fenômenos. O cenário de seca severa e de incêndios impacta diretamente na saúde da população, bem como a perda de safras agrícolas. O desdobramento dessa cadeia de causalidade nos leva ainda à elevação de preços dos gêneros alimentícios, à pressão inflacionária e à consequente perda de poder de consumo e empobrecimento da dieta alimentar populacional.

 

Veja a sessão completa em:

 

A filantropia deve promover uma atuação em rede, articulando e mobilizando atores sociais diversos: a conectividade e a coletividade como solução para problemas sistêmicos e complexos. São alguns os exemplos de redes promovidas pelo Instituto Arapyaú: incluem a Coalização Brasil, Clima e Floresta e Agricultura; o MapBiomas; Uma Concertação pela Amazônia, dentre outras.

Se um dos principais ‘nós’ a serem desatados é a ausência de coletividade na sociedade, esse também parece ser um desafio com o qual a própria filantropia precisa lidar.

Cida Bento, co-fundadora e conselheira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), reforça a importância da coletividade por meio do estabelecimento de redes, mas vai além ao defender uma mudança na estrutura de poder, trazendo mais diversidade e, consequentemente, pluralidade de vozes e interesses para o campo da filantropia. A busca por soluções e as tomadas de decisão carecem da perspectiva daquela parcela da população historicamente marginalizada, que mais sofre com os desafios sociais, econômicos e ambientais da atualidade.

“[Espaços coletivos e plurais] ajudam a tomada de ação mais consciente e consequentemente a gerar um impacto maior”, complementa Sergio Fausto.

Um movimento denominado ‘filantropia baseada na confiança’ caminha nessa direção ao advogar que financiadores devem estabelecer seus relacionamentos com os parceiros beneficiários a partir de um lugar de confiança e colaboração, em vez de conformidade e controle.

 

Repensando o futuro da filantropia

O educador e filósofo Paulo Freire certa vez disse que era por amar as pessoas e o mundo que ele lutava para que a justiça social se implantasse antes da caridade. Não se trata de desmerecer a caridade em si, mas sim de que, ao fomentar a caridade como consequência de uma estrutura de privilégios, corre-se o grande risco de que ela sirva como instrumento de manutenção, e até mesmo de álibi da desigualdade.

A filantropia diferencia-se da caridade justamente pelo seu caráter estratégico, capaz de melhor alocar qualitativa e quantitativamente os recursos oriundos do capital privado para as causas públicas e coletivas. A questão é nos perguntarmos: ela tem sido efetivamente estratégica? Se o grande ‘nó’ da ausência de coletividade, enfatizado pelos palestrantes, está presente tanto nos problemas atuais da sociedade, quanto na forma como as ações filantrópicas têm ocorrido, isso parece indicar que o setor filantrópico corre o risco de estar, ele também, reproduzindo as relações sociais de poder.

Que a harmonia, a reciprocidade, a coletividade e a pluralidade, possam permear um pensar e um fazer filantrópico mais potente para lidar com os desafios atuais, que são regidos por interesses quase que exclusivamente particulares e econômicos.

Quem sabe, ainda, já não é tempo de repensarmos o sujeito da filantropia (àquele do homem branco, dotado de posses financeiras e certo prestígio profissional). Afinal, parece urgente olharmos ao nosso redor e nos perguntarmos: quem tem mais a doar e quem tem mais a receber e aprender no mundo de hoje?

 

Fotos: André Porto e Caio Graça/IDIS.