Responsabilidade e confiança: conheça o Trust Based Philanthropy

Por Aline Herrera, Letícia dos Santos e Luiza Helena, integrantes do time de consultoria do IDIS

Investidores sociais que atuam essencialmente no financiamento de projetos e iniciativas de terceiros correspondem a menos de 25% entre institutos, fundações e empresas, de acordo com o último Censo GIFE. Dentre os investidores sociais considerados como híbridos – ou seja, que tanto executam, como financiam projetos (41% da amostra da pesquisa), a maioria – cerca de 55% – possui um perfil mais voltado para a execução de projetos do que para o financiamento.

O volume de recursos repassados a terceiros em 2022 correspondeu a 37% do volume total do investimento social privado (ISP) realizado, o equivalente a R$ 1,8 bilhões. Mais da metade desses recursos foram recebidos por organizações da sociedade civil (OSCs), escolhidas principalmente pela sua confiabilidade, transparência e conhecimento em suas áreas de atuação. Ao relatarem as dificuldades em investir em OSCs, os investidores sociais apontam para os desafios no monitoramento e avaliação das iniciativas, bem como a fragilidade na gestão ou baixa capacidade das OSCs que buscam apoio.

Do outro lado, a pesquisa Periferias e Filantropia: As barreiras de acesso aos recursos no Brasil, realizada pelo Instituto PIPA, em parceria com o Instituto Nu, evidencia que 95% dos respondentes, responsáveis pela implementação de iniciativas socioambientais na periferia, relataram dificuldades para acessar financiamento. Esses obstáculos impostos às organizações da sociedade civil nos leva à seguinte pergunta: como o investimento social privado pode ir mais longe no enfrentamento das desigualdades sociais?

Uma das respostas já no radar de quem pensa nos limites e avanços no campo da filantropia é simples: a confiança. No texto ‘Aprofundando a conversa sobre a importância de confiar, a ativista Joana Mortari sinaliza que há um reconhecimento do setor sobre a necessidade de desenvolver a confiança, no entanto, é necessário partir para o próximo passo, desenvolver o exercício de confiar. 

Assim, este texto traz reflexões acerca do papel dos investidores sociais privados, sobretudo enquanto financiadores grantmakersou seja, que repassam recursos a terceiros – neste caminho de relações mais inovadoras e horizontais, fundamentadas nos princípios da Trust Based Philanthropy, em português filantropia baseada em confiança.

 

 

O contexto do Trust Based Philanthropy

 

“Acreditamos que as equipes com experiência na linha de frente dos desafios saberão melhor como colocar o dinheiro em bom uso”.

Mackenzie Scott

 

O trecho destacado foi retirado de uma reflexão da filantropa Mackenzie Scott, feita após a realização de mais uma de suas doações bilionárias. A americana, que detém 4% das ações da Amazon, é conhecida por realizar doações robustas e irrestritas a organizações sem fins lucrativos ao redor do mundo, totalizando mais de US$ 16,5 bilhões repassados.

Esse modelo de doação começou a se fortalecer em 2020, durante a pandemia, para fundos de auxílio emergencial destinados ao apoio à vítimas e se estendeu a organizações da sociedade civil que atuam em prol das comunidades, as quais historicamente enfrentam mais dificuldades no acesso a recursos financeiros.

A pandemia escancarou (não só para Mackenzie Scott) a necessidade da atuação filantrópica pelo mundo, especialmente diante dos inúmeros cenários de calamidade e urgências sociais desencadeados pela disseminação da Covid-19. O cenário foi a catálise para a discussão da necessidade de uma doação simplificada ganhar ainda mais força, procurando redesenhar as relações e os vínculos entre organizações e investidores. 

De acordo com o material Filantropia Baseada em Confiança: Ferramenta de Autorreflexão, proposto pelo GIFE, a adoção dos valores da Filantropia Baseada em Confiança parte de uma análise interna em torno de 4 pontos centrais: a cultura organizacional do investidor, os seus processos de tomada de decisão, as estruturas através das quais opera e, por fim, suas práticas. Portanto, discutiremos a seguir caminhos para iniciar essa jornada em direção à confiança.

 

Como o Trust Based Philanthropy pode virar o jogo?

Para mudar as regras do jogo e tornar a filantropia uma ação mais democrática e convidativa, o Trust Based Philanthropy ressignifica posições, trazendo maior paridade entre o papel dos atores envolvidos na luta pela garantia da equidade social. 

As práticas mais difundidas por essa modalidade de grantmaking consistem em promover uma ‘doação livre’ (não vinculada a projetos), irrestrita (sem restrição de alocação orçamentária), e multi-anual. Na ponta, praticar uma filantropia baseada na confiança requer um exercício de escuta ativa das necessidades dos beneficiados. Valores como flexibilidade e transparência são essenciais para garantir que as demandas e limitações sejam compreendidas dos dois lados da relação. Aqui, também vale a construção de relações mais próximas e humanizadas entre doador e beneficiário, simplificando fluxos de trabalho e partindo da premissa do Trust based Philanthropy de que deve haver uma mudança na relação com o financiador, que sai da posição de ‘patrão’ e passa a ser parceiro. Assim, uma boa alternativa passa por criar espaços de feedback, já que 67% das organizações recebedoras de doações relatam que essa prática, mesmo que ocorra, não é institucionalizada.

Outra ação possível é a não restrição do recurso doado. É comum que o repasse de recursos seja estritamente direcionado para custos diretamente relacionados ao projeto, sem considerar a sustentabilidade e a estruturação da organização que o executa. Nesse sentido, pensar em uma doação livre e irrestrita é garantir autonomia para que as organizações façam o gerenciamento de seus recursos com base no que identificam como mais prioritário, levando em conta sua sobrevivência, a ampliação e escalabilidade dos projetos. Aqui, cabe também a proatividade dos doadores em entender as prioridades da organização e possíveis oportunidades adicionais de apoio.

Também para esse fim, uma boa prática é a promoção de capacitação técnica, feita de forma voluntária e gratuita, das organizações apoiadas, orientando-as sobre ferramentas que podem auxiliar a gestão e continuidade dos projetos, como Teoria da Mudança e indicadores. Também segundo a pesquisa Periferias e Filantropia da Iniciativa Pipa, 95% das organizações sociais em territórios periféricos respondentes sinalizaram que gostariam de receber formação sobre gestão financeira e de projetos e acreditam que a formação impacta na capacidade de captação de recursos financeiros. 

 

Quais são os desafios para essa prática?

Como aponta a Charities Aid Foundation no World Giving Index de 2023, fortalecer um ecossistema robusto de filantropia requer não apenas a adoção de boas práticas de governos e financiadores internacionais, mas também um trabalho contínuo das organizações da sociedade civil em relação à sua governança e transparência, a fim de conquistar a plena confiança pública. 

Neste ponto, é evidente como a prática da filantropia baseada em confiança funciona em uma via de mão dupla, onde tanto os financiadores quanto as organizações precisam confiar uns nos outros, além de ambos ouvirem as pessoas e comunidades impactadas. Também é imprescindível para essa prática que a organização recebedora da doação esteja disposta a compartilhar informações-chave sobre sua estratégia e atuação, garantindo assim a horizontalidade e a co-construção entre as partes envolvidas, tanto no recebimento quanto no repasse de recursos.

Para muitos investidores sociais, investir em organizações com projetos próprios ainda é visto como um risco, seja pela falta de transparência ou por um desconhecimento da metodologia baseada na confiança. Nesse sentido, o crescimento da prática é exponencial: quanto mais executada e divulgada, mais amplamente difundida se torna a metodologia e maior a tendência de adesão. Causas originárias de movimentos sociais que já pleiteam representação e equidade estão abrindo fronteiras nessa modalidade, dando voz a grupos invisibilizados e investindo em fundos com práticas embasadas na co-criação e nas práticas de confiança, como o Fundo Fós Feminista (dedicado às questões de gênero) e o The Black Fund (voltado para questões raciais).

 

Estudo de Caso: Instituto Chamex e Transformando Territórios

Apesar da modalidade de Edital não ser a mais apropriada para esses princípios, organizações que queiram se iniciar nesse tema, ou que apresentem uma menor capacidade institucional de promover essas mudanças sistêmicas, também podem aderir a esse movimento a partir de ações mais simples em seus processos já existentes de repasse de recursos.

O IDIS incentiva seus parceiros e clientes a praticarem princípios da filantropia baseada na confiança dentro de suas práticas de grantmaking. Um dos financiadores que trabalha junto com nossa equipe de consultoria, o Instituto Chamex, tem evoluído a cada ano em sua abordagem junto às organizações financiadas. Desde a primeira Edição do Edital Educação com Cidadania, o Instituto preza por uma relação aberta e direta com seus beneficiários. 

Além do aporte financeiro, as cinco organizações contempladas pelo edital também passam por um workshop de Teoria da Mudança e construção de indicadores junto à equipe especialista do IDIS, garantindo que o acompanhamento dos projetos seja de qualidade, bem como fortalecendo sua permanência e replicabilidade. No último ano, a 3ª Edição do Edital Educação com Cidadania abriu espaço para que até 50% do recurso aportado seja utilizado para despesas de pessoal (próprio ou terceirizado) e até 10% para despesas administrativas (como água, luz, aluguel e outras), mantendo a diretriz para a Edição deste ano.. 

Como ação adicional, as organizações finalistas e contempladas são convidadas para integrarem o Portal de Projetos, uma iniciativa estilo vitrine desenhada para atração de parceiros e divulgação do trabalho social desenvolvido. 

Dando um passo à frente, o programa Transformando Territórios (TT), do IDIS em parceria com a Charles Stewart Mott Foundation, visa apoiar Fundações e Institutos Comunitários (FICs). Essas organizações atuam no fortalecimento de um determinado território como pontes entre organizações e iniciativas sociais locais, doadores, sociedade civil e poder público. Na modalidade de Filantropia Comunitária, as FICs analisam o território em que estão inseridas de forma integral, possuindo total autonomia para alocar os recursos conforme necessidades e prioridades da região. Dessa forma, os repasses financeiros e o apoio técnico são direcionados de maneira mais eficaz para o fortalecimento local.

O grande trunfo do TT consiste nos seus valores estruturantes, sendo estes pilares para uma filantropia orientada por confiança. A defesa do protagonismo comunitário, valores democráticos, transparência, práticas sustentáveis e atuação em rede, promove um engajamento ativo das comunidades locais como impulsionadoras do desenvolvimento regional. Isso estimula processos participativos, liberdade de expressão e respeito à diversidade por meio de iniciativas colaborativas voltadas para a conscientização e o cuidado com os recursos naturais. Tudo isso é complementado pela ênfase na comunicação transparente, incentivando o compartilhamento de informações e a divulgação de dados.

Esse modelo de gestão, atrelado a uma doação irrestrita e plurianual estabelece uma relação de confiança entre o doador (empresas e parceiros apoiadores do TT) e as organizações diretamente impactadas (FICs). Parte-se do princípio de que a atuação das FICs pode ter um impacto maior no território do que doações diretas verticalizadas. Além disso, o aporte tem um papel de fortalecer o desenvolvimento institucional das FICs, promovendo essas organizações no território brasileiro não apenas por meio de recursos financeiros, mas também por meio de capacitações e assistência técnica.

As doações podem ser realizadas por empresas e filantropos, adotando organizações ou territórios do programa. Caso tenha interesse, visite o site ou entre em contato com o IDIS.

 

A mudança que esperamos

O IDIS vem se aprofundando nessas novas tendências de filantropia. A última edição do Perspectivas para a Filantropia no Brasil, destacou que o apoio ao fortalecimento institucional de organizações da sociedade civil, do ponto de vista da governança e transparência, pode gerar mudanças catalisadoras em direção a níveis mais elevados de confiança, em um círculo virtuoso. 

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