As empresas são organismos poderosos e podem, e devem,
usar seus recursos para melhorar a sociedade
Um dos grandes economistas da história, Klaus Schwab, sugeriu em 1971 um modelo de capitalismo no qual as empresas deveriam almejar a criação de valor a longo prazo, levando em consideração as necessidades de todos os públicos relacionados ao negócio. Ou seja, o papel das empresas não deveria se resumir apenas ao lucro, mas envolveria também a contribuição ativa ao bem-estar da sociedade.
Este conceito foi nomeado mais tarde por R. Edward Freeman como Capitalismo de Stakeholders (Capitalismo das partes interessadas, em tradução livre). Você já ouviu falar do termo? Entende suas implicações no mundo e nas atuais dinâmicas empresariais?
Em um mundo envolto de demandas urgentes que exigem, cada vez mais, práticas sustentáveis, a temática torna-se mais relevante a cada dia. E é sobre esse assunto que vamos falar nesse texto!
A origem do Capitalismo de Stakeholders
Em 1970, o Nobel da Economia Milton Friedman conceituou o modelo capitalista que seria dominante ao longo das próximas décadas. Ele afirmava que a única responsabilidade social das empresas era a maximização de seus lucros, ou seja, que o dinheiro era o único objetivo a ser cobiçado e alcançado pelos negócios. Este modelo ficou conhecido como Capitalismo de Shareholders ou Capitalismo de Acionistas.
A resposta de Schwab, na época, não surtiu muito efeito. Nos anos 1970 e 1980, processos de desregulamentação e liberalização dos mercados incentivaram a competição acirrada e a maximização dos lucros em detrimento de outras considerações importantes. O processo envolveu a eliminação e flexibilização de muitas das leis governamentais que controlavam as atividades econômicas, incluindo as que estabeleciam salários mínimos e limites de horas de trabalho. A pressão por lucros a curto prazo muitas vezes se sobrepôs a considerações mais amplas sobre os impactos sociais e ambientais.
Passados 20 anos, o consenso sobre este entendimento acerca do papel das empresas na sociedade começou a entrar em xeque. John Elkington apresentou, em 1994, o conceito de ‘Triple Bottom Line’ (que no Brasil foi popularizado como o tripé da sustentabilidade ), uma expansão do modelo tradicional de avaliação das empresas, que considera, além de sua dimensão financeira, a performance social e ambiental dos negócios.
O debate evoluiu com o surgimento do conceito de Capitalismo Consciente, cunhado em 2007 pelo empresário Raj Sisodia e por John Mackey. O Capitalismo Consciente tem uma relação próxima com o Capitalismo de Stakeholders, no entanto, vai além, enfatizando a importância de uma liderança consciente, cultura empresarial e propósito maior na criação de valor para todas as partes interessadas.
Com o crescimento gradativo do entendimento sobre os diferentes papéis que devem ser exercidos por uma empresa, o Capitalismo de Stakeholders passou a ganhar uma aplicação cada vez mais prática às corporações. Além de olharem para seus lucros, as empresas passaram a encarar práticas de responsabilidade socioambientais junto a seus stakeholders, como papéis inerentes à sua função na sociedade.
Em agosto de 2019, o grupo de CEO’s das principais empresas norte-americanas, conhecido como Business Roundtable, divulgou uma declaração afirmando o compromisso de agregar valor para todos os stakeholders, incluindo clientes, trabalhadores, fornecedores e comunidades onde operam. Essa decisão é considerada uma mudança significativa na perspectiva empresarial.
Além disso, a BlackRock, que administra mais de US$ 7 trilhões em investimentos, tem buscado incentivar práticas de gestão que impulsionam a rentabilidade e promovam a responsabilidade corporativa, social e ambiental. Em 2018, a organização recomendou que as empresas se perguntassem: “Que papel desempenhamos na comunidade? Como estamos gerenciando nosso impacto no meio ambiente? Estamos trabalhando para criar uma força de trabalho diversificada?”.
Segundo a definição do filósofo Robert Freeman, stakeholders são “qualquer grupo ou pessoa cujos interesses podem afetar ou ser afetados pelas realizações dos objetivos de uma organização”. De maneira simplificada, são todos os grupos que possuem alguma relação, direta ou indireta, com a atuação da empresa.
As empresas desempenham um papel fundamental na sociedade, e sua influência se estende muito além dos limites de suas operações comerciais. Elas empregam pessoas, geram renda, criam produtos e serviços, e possuem um impacto significativo na vida de muitas pessoas e de comunidades. Nesse sentido, as empresas não podem simplesmente buscar maximizar seus lucros sem considerar as consequências de suas ações. É fundamental que os negócios considerem seu relacionamento com o público e sua responsabilidade na cadeia produtiva, para garantir que suas ações tenham um impacto positivo na sociedade e no meio ambiente.
Os públicos querem ser escutados e desejam que seus pedidos sejam atendidos. Mais do que nunca, buscar essa satisfação é importante para as empresas, não apenas como forma de compreender as demandas mais urgentes da sociedade, mas também como um meio para a conquista de confiança.
No artigo ‘Do corporates have a duty to be trustworthy?’ (em português ‘As empresas têm o dever de ser confiáveis?’), Nikolas Kirby, Andrew Kirton e Aisling Cream apontam uma queda de confiança nas empresas desde a crise global de 2008. Segundo o Edelman Trust Barometer 2023, o nível de confiança das pessoas no setor privado é de 62% no mundo, o que apesar de ser um número elevado, está longe de ser um consenso.
O que caracteriza o Capitalismo de Stakeholders
O Capitalismo de Stakeholders passa a se destacar em um contexto de crescimento da consciência da sociedade sobre questões sociais, ambientais e econômicas, que determinam e influenciam os hábitos de consumo das pessoas.
Os negócios são organismos poderosos e, nessa conjuntura, é inevitável um novo olhar para eles, a fim de apontar e questionar: Afinal, o que é uma boa empresa? De qual empresa eu quero consumir? O que a empresa tem feito para diminuir seu impacto negativo? E assim sucessivamente.
O equilíbrio entre lucro e sustentabilidade é um dos principais critérios de avaliação a partir da ótica do Capitalismo de Stakeholders. Para definir com mais exatidão o que caracteriza o modelo, foram, então, instituídos 4 pilares:
Princípios de governança – relacionado ao propósito do empresa, comportamento ético, estruturas equilibradas de tomada de decisão e práticas de transparência;
Planeta – análise dos impactos da empresa no meio ambiente;
Pessoas – como o negócio se relaciona com seus colaboradores;
Prosperidade – influência da empresa no bem-estar da sociedade.
Semelhante com algo que temos visto muito atualmente por aí, certo? Como é possível observar, o Capitalismo de Stakeholders possui uma conexão direta com os chamados critérios ‘ESG’ (em português Ambiental, Social e Governança). A prática fornece métricas sistematizadas que ajudam a determinar se as empresas estão, de fato, projetando uma atuação sustentável na sociedade.
Além disso, o ESG e suas métricas são critérios de extrema relevância para as escolhas dos investidores no mercado financeiro. Um estudo da Comissão de Valores Imobiliários (CVM) chamado “A agenda ESG e o mercado de capitais”, estima que cerca de 36% dos ativos globais sob gestão estão investidos a partir de algum critério de sustentabilidade.
O preço caro de adaptar-se a qualquer custo
Com a crescente demanda de adequação das empresas nas práticas sustentáveis, passamos a observar outro fenômeno, e dessa vez extremamente problemático: os “washings”. O termo se refere às empresas que se colocam como agentes de práticas sustentáveis mas que, na realidade, não seguem bons preceitos de governança e não criam impactos efetivos nos campos social e ambiental.
O conceito se manifesta de formas variadas, podendo ser um greenwashing (relativo ao meio ambiente), socialwashing (relativo às pautas sociais), ou até ESG-washing (abrange as práticas ESG de forma geral).
Essa fraude de propósito e a adoção de medidas de washings são prejudiciais ao setor filantrópico e a outras iniciativas sérias, já que levanta suspeitas sobre a credibilidade e confiança do setor como um todo. O comportamento também representa, a um potencial de perda de valor de mercado para as empresas, além de, é claro, ser prejudicial à população, que não será beneficiada da forma como a foi prometida, podendo, inclusive, estar sendo prejudicada.
O Capitalismo de Stakeholders hoje
Empresas são o principal agente econômico de nossa sociedade, mas é cada vez mais evidente sua interdependência com os demais. Conforme as desigualdades sociais e os impactos da mudança climática se agravam, são convocadas a fazer parte da solução. A pandemia de Covid-19, por exemplo, evidenciou uma conexão muito forte entre negócios e sociedade. Um estudo feito pela consultoria PwC indicou que sete em cada dez negócios no mundo foram impactados negativamente pela pandemia. Em contrapartida, de acordo com o Monitor de Doações da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), 85% dos mais de R$ 7 bilhões doados para fazer frente à pandemia de Covid-19 vieram de empresas, um recorde de investimento social privado no país.
A partir dessa mutualidade, o Capitalismo de Stakeholders passou a integrar de maneira natural e cada vez mais constante o mundo empresarial. Porém, o modelo ainda não possuía parâmetros oficiais até pouco tempo.
Em janeiro de 2020, o Fórum Econômico de Davos atualizou seu manifesto, endossando o conceito. O evento apontou ser essencial refletir sobre estruturas de governança, que garantam o equilíbrio entre as demandas dos vários grupos diretamente interessados em um negócio. Ainda como maneira de sistematizar os requisitos para a adoção do Capitalismo de Stakeholders, o Fórum elaborou um documento chamado de “Measuring Stakeholder Capitalism”(em português Medindo o Capitalismo de Stakeholders), que visa melhorar as formas como as empresas calculam e exibem seu desempenho.
“O objetivo dos negócios não é produzir lucros. O objetivo dos negócios é produzir soluções lucrativas para os problemas das pessoas e do planeta”
Colin Mayer da Universidade de Oxford