Transformando urgência em oportunidade: fortalecendo as doações emergenciais para um impacto de longo prazo

Por Patricia Mcllreavy, CEO do Center for Disaster Philanthropy (CDP)*
*Com sede nos Estados Unidos, mas com atuação internacional, o CDP tem apoiado os esforços de recuperação das enchentes no Rio Grande do Sul realizados pela Fundação Gerações, Retomada e AVSI Brasil

É crescente no Brasil a vulnerabilidade a desastres climáticos. Ocupando a 50ª posição entre 171 países no Índice Global de Risco Climático de 2025, a população brasileira tem enfrentado chuvas torrenciais seguidas de enchentes e deslizamentos de terra, ondas de calor severas, secas, além de incêndios florestais devastadores.

Felizmente, quando os desastres acontecem, os brasileiros respondem com generosidade, doando tempo, talentos e recursos. A Pesquisa Doação Brasil 2024 aponta que metade da população fez doações em resposta a emergências no ano passado, sendo que 60% dessas doações em dinheiro foram destinadas a locais fora do seu próprio estado. Isso demonstra não apenas solidariedade nacional, mas um instinto profundo de agir, mesmo quando a necessidade está distante de casa.

No entanto, diante dessa generosidade, surge uma pergunta: como podemos canalizar o poder das doações imediatas também para a prevenção e a recuperação de longo prazo?

No Center for Disaster Philanthropy, que lidero, reconhecemos que os três principais motivadores para doações em desastres — além da empatia — são a escala da crise, a cobertura da mídia e a proximidade. Também entendemos como os desastres e os riscos que os causam agravam vulnerabilidades pré-existentes e podem gerar maior destruição e uma recuperação mais prolongada.

As doações emergenciais imediatas, especialmente para desastres menores ou que recebem pouca atenção, muitas vezes refletem a carga emocional do momento. Essa generosidade instintiva é poderosa: as doações para alívio imediato são mobilizadas rapidamente, mas tendem a diminuir à medida que o foco da mídia muda ou os esforços de recuperação se prolongam.

No entanto, a recuperação não é uma linha do tempo nem uma fase — é uma abordagem. Ela exige mais do que reconstruir estruturas ou restaurar sistemas: requer o enfrentamento das causas profundas das vulnerabilidades, investimento em saúde mental e a capacitação das comunidades para liderarem suas próprias soluções. À medida que os desastres relacionados ao clima se tornam mais frequentes e intensos, a recuperação torna-se ainda mais complexa. O segredo para uma recuperação bem-sucedida está em uma preparação eficaz, financiamento flexível e contínuo, e um compromisso com a equidade que permita às comunidades não apenas retornar ao que eram, mas avançar rumo ao que podem ser.

Os dados da Pesquisa Doação Brasil iluminam perspectivas de avanço. Embora apenas 10% dos doadores emergenciais digam doar exclusivamente em contextos de desastre, 40% também doam em outros contextos. Isso representa uma oportunidade. Se mesmo uma parcela desses doadores, que já contribuem em momentos não emergenciais, for incentivada a investir na recuperação contínua e na preparação, o potencial de impacto sustentável é enorme.

A confiança, no entanto, é a barreira que precisamos enfrentar. Apenas 30% dos brasileiros acreditam que a maioria das ONGs é confiável, e quase metade parou de doar após se deparar com notícias negativas. Transparência, prestação de contas e narrativas envolventes são fundamentais, não apenas para captar recursos nas primeiras semanas, mas para conquistar a confiança do público nos meses e anos seguintes. Os doadores querem ajudar; mas também querem entender para onde vai seu dinheiro e qual diferença ele faz.

Os próprios doadores estão nos apontando o caminho: investir em uma sociedade civil local forte. Apoio flexível (incluindo despesas operacionais gerais) ajuda as ONGs a desenvolverem sistemas financeiros, práticas de prestação de contas e capacidades de comunicação necessários para receber recursos e relatar impactos programáticos. As organizações mais próximas das comunidades afetadas são também as mais capacitadas para oferecer soluções, mas precisam de recursos antes, durante e depois dos desastres. Ao encarar a recuperação como algo que vai muito além da emergência imediata, conseguimos ver as oportunidades que temos para investir em uma recuperação equitativa e de longo prazo.

Não podemos impedir todos os desastres, mas podemos construir sistemas que tornem nossa resposta mais equitativa e eficaz. Isso começa com o reconhecimento de que emergências não são apenas momentos de perda; são momentos de escolha. Vamos doar apenas uma vez, ou vamos doar de forma a construir algo duradouro?

Comunicação e confiança: os ativos invisíveis do engajamento

*Por Beatriz Waclawek, gerente de investimento social no Movimento Bem Maior

Apesar dos avanços do terceiro setor brasileiro, a cultura de doação ainda passa por instabilidades Em tempos de desinformação, sobrecarga de causas e alta rotatividade de apoio, a confiança passou a ser o eixo central da decisão de quem doa. O que determina essa confiança? E qual o papel da comunicação nesse processo?

Em 2024, no Movimento Bem Maior (MBM), observamos entregas estratégicas e robustas das organizações apoiadas pela nossa carteira. O Instituto Rodrigo Mendes, por exemplo, formou secretarias municipais de educação, contribuindo diretamente para a homologação de decretos e leis de inclusão de estudantes com deficiência. O Estímulo lançou o primeiro fundo de apoio a empreendedores afetados por desastres climáticos no Rio Grande do Sul, arrecadando cerca de R$722 milhões. A Ação da Cidadania sediou a reunião ministerial do G20, consolidando uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. O Todos Pela Educação reuniu os prefeitos eleitos das maiores cidades do país para pactuar compromissos com a educação pública.

Tais exemplos confirmam o que o campo social já sabe – e o que nem sempre é visível fora dele: as OSCs brasileiras vêm gerando resultados de grande valor. As entregas são técnicas, os métodos amadureceram, os resultados estão mais nítidos e a articulação política evoluiu. O desafio, hoje, está menos na capacidade de execução e mais em como essa entrega é percebida por quem doa.

A Pesquisa de Doação Brasil 2024 do IDIS evidencia esse ponto. O número de brasileiros que doam caiu de 84% para 78% entre 2022 e 2024. Os dados mostram que as doações estão mais seletivas, com uma baixa confiança estrutural nas organizações, no qual 83% buscam informações antes de doar, e 49% já deixaram de doar após notícias negativas. O novo perfil de doador é mais exigente e criterioso, concentrado nas classes médias e altas, e menos fiel na constância no apoio (49% dos doadores mantêm o apoio à mesma organização vs 69% em 2015). A pesquisa demonstra que confiança se tornou um critério central.

Por outro lado, a doação institucional, aquela que considera quem doou dinheiro para organizações sociais, campanhas e iniciativas aumentou de 36% para 43% e bateu recorde de volume: R$24,3 bilhões, o maior montante já estimado pela série histórica. O tíquete médio aumentou, especialmente entre pessoas com mais renda e escolaridade. Em meio a isso, observamos um Brasil marcado por desastres climáticos sem precedentes, envelhecimento populacional, instabilidade política e hiperconexão digital. Tais cenários afetam o imaginário coletivo e, por consequência, a cultura de doação. Em relação às pesquisas de 2020 e 2022, os dados de 2024 se aproximam de 2015, indicando certa retração, maior exigência de transparência e demanda por vínculos de confiança.

Diante das entregas de qualidade e de relevância do setor, exemplificadas no início pelas organizações da carteira do MBM, notamos um descompasso entre a percepção da sociedade sobre o campo social e o impacto positivo gerado no país. Se a entrega está acontecendo e o resultado é real, por que não reverbera na opinião pública?

Nesse quesito, a comunicação e transparência deixam de ser ferramentas satélites e passam a ser ativos centrais para a sustentabilidade do setor. Qual o caminho, então? Talvez seja começar pelo fortalecimento institucional, união de vozes e por uma comunicação mais estratégica.

Recentemente, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) publicou um artigo sobre o papel do jornalismo local na construção de uma sociedade bem-informada e democrática, garantindo acesso a informações confiáveis. Talvez estejamos diante de uma oportunidade de revisitar a estratégia coletiva de narrativas do terceiro setor para nos unirmos e refletirmos porque tais estratégias não refletem em comunicações assertivas para a sociedade. Como gerar mais reconhecimento social? Precisamos, quem sabe, de uma coalizão de comunicação que represente o setor?

Quem trabalha no campo sabe o valor que ele gera. Mas se a sociedade não reconhece esse valor, então temos uma lacuna, e uma oportunidade.

A cultura de doação é sensível ao contexto, mas moldada pela confiança. E confiança se constrói com presença e escuta ativa. Transparência não é planilha: é relação. Engajamento não é só recorrência financeira, é quando quem doa sente que faz parte de algo maior. Eis minha interrogação final: o que, unidos, podemos fazer de maior?

Dez anos da Pesquisa Doação Brasil e a descoberta da cultura de doação brasileira

*Por Andréa Wolffenbüttel, consultora técnica da Pesquisa Doação Brasil

Quando cheguei ao IDIS, há dez anos, recebi uma missão desafiadora: realizar uma pesquisa que revelasse quantos brasileiros doavam e quanto doavam. Dito assim, parece simples. Mas ninguém havia feito isso antes — e as dúvidas eram muitas.

Havia quem defendesse que o foco deveria estar em quem não doa, para entender como conquistar esse público. Outros achavam mais importante compreender o doador, para estabelecer um diálogo mais eficaz e fidelizar as doações. Além disso, havia questões conceituais importantes: deveríamos considerar apenas doações em dinheiro? Ou também incluir doações de bens e trabalho voluntário?

Essas eram apenas algumas das perguntas que nos rondavam em um cenário sobre o qual pouco se sabia. O que hoje parece evidente — que os brasileiros são solidários, que a maioria faz doações, que há certo desconforto em falar sobre o ato de doar e uma desconfiança presente na relação entre doadores e organizações —, na época era desconhecido. A impressão predominante era de que a cultura de doação no Brasil ainda era incipiente.

Quando recebemos os resultados da primeira edição da Pesquisa Doação Brasil, ficamos surpresos: 77% dos brasileiros haviam feito algum tipo de doação em 2015. Mais da metade (52%) havia doado dinheiro e 43% contribuído com organizações sociais, campanhas ou grupos organizados. A reação da equipe foi de incredulidade. Pedimos ao Instituto Gallup, responsável pela coleta e análise dos dados na época, que reprocessasse os resultados. Achávamos que havia algum erro. Mas não havia.

Temíamos que os dados fossem questionados — como, de fato, foram. Ainda assim, o tempo se encarregou de dar perspectiva. A segunda edição da pesquisa, que analisou o comportamento dos doadores em 2020, um dos anos mais dramáticos da nossa história recente, veio confirmar tendências. Depois, veio a terceira. E agora, dez anos depois, lançamos a quarta edição da Pesquisa Doação Brasil, com resultados muito próximos aos da primeira.

O que se confirma é que a Pesquisa Doação Brasil foi um verdadeiro divisor de águas. Não apenas revelou a cultura de doação no país, como também contribuiu para fortalecê-la, ao lançar luz sobre comportamentos, motivações e barreiras que antes viviam no escuro.

Cooperar é somar: Quando a solidariedade vira estratégia de transformação

*Por Romeo Balzan, superintendente de cooperativismo na Fundação Sicredi

Em 2024, o Brasil foi sacudido por uma sucessão de desastres climáticos que deixaram cicatrizes profundas no território e no coração do País. As enchentes no Rio Grande do Sul não foram apenas uma tragédia — foram um grito de alerta. Um chamado urgente para entrarmos em ação. E foi exatamente isso que o Sicredi fez. No epicentro da maior crise climática da história gaúcha, escolhemos estar onde sempre estivemos: ao lado das pessoas. Transformamos presença em ação, e ação em esperança. Mostramos que cooperar não é apenas um valor — é uma estratégia de transformação. Em um país onde metade da população respondeu com doações em 2024, e onde cresce a expectativa de que empresas sejam parte da solução, o Sicredi escolheu liderar pelo exemplo. Escolheu agir. Escolheu cooperar.

 

Solidariedade que se organiza, cooperação que se multiplica

A campanha “1 + 1: Cooperar é somar” foi mais do que uma iniciativa de arrecadação. Foi um convite à empatia ativa e à ação coletiva. Cada real doado por associados, colaboradores e comunidade foi dobrado, gerando um efeito multiplicador de solidariedade. O resultado foi uma mobilização histórica que movimentou R$ 25,4 milhões em doações, com contribuições da comunidade, da Fundação Sicredi e das cooperativas.

Mas a cooperação não parou por aí. Outro R$ 1,3 milhão foi doado por parceiros nacionais e internacionais, um valor também intermediado pela Fundação Sicredi, ampliando o alcance das ações emergenciais.

E, em uma terceira frente de apoio, as Centrais e Cooperativas do Sicredi destinaram mais de R$ 17,1 milhões diretamente às comunidades, com foco especial em  colaboradores e escolas participantes dos programas de educação. Além disso, por meio dos Fundos Institucionais do Sicredi, foram direcionados mais de R$ 48,7
milhões ao apoio das regiões atingidas.

No total, os esforços do Sicredi somaram mais de R$ 92 milhões em apoio direto às comunidades e cooperativas afetadas. Cada centavo, um gesto de cuidado. Cada entrega, uma ponte entre o trauma e a reconstrução. É a cooperação fazendo a diferença real na vida das pessoas.

 

Quando a reputação se constrói com ação

A Pesquisa Doação Brasil 2024 revelou um dado poderoso: 70% dos doadores emergenciais valorizam e se lembram das empresas que doaram. E mais: 48% acreditam que é responsabilidade das empresas agir em emergências, enquanto 46% acham que elas ainda fazem pouco.

O Sicredi escolheu fazer mais. Mobilizou sua rede, seus fundos, seus parceiros e sua comunidade. Transformou capilaridade em logística humanitária. E, acima de tudo, mostrou que reputação não se constrói com marketing — se constrói com coerência.

 

Confiança se conquista com presença

Em um país onde apenas 31% da população confia que as ONGs deixam claro o que fazem com os recursos, a transparência virou um ativo estratégico. A Fundação Sicredi assumiu a gestão dos recursos com rigor, rastreabilidade e foco nas reais necessidades locais. Cada ação foi pensada para gerar impacto com responsabilidade. Cada entrega, uma reafirmação de confiança.

 

O cooperativismo como infraestrutura social de confiança

A crise de 2024 não apenas testou estruturas — ela revelou vocações. A do Sicredi sempre foi clara: ser um agente de transformação social. A experiência reforçou a importância de protocolos de resposta, mas também de algo mais profundo: uma cultura de solidariedade institucionalizada.

A solidariedade é um valor do cooperativismo, fazendo parte do DNA das cooperativas, sendo ela um ingrediente essencial da atuação local do Sicredi.

A Pesquisa Doação Brasil também mostrou que 45% dos brasileiros atribuem grande responsabilidade às empresas na solução de problemas sociais e ambientais — número que cresce entre os mais escolarizados e com maior renda. Isso nos desafia a ir além da filantropia pontual. A construir estratégias de impacto social com visão de longo prazo.

 

E o futuro? Ele começa agora.

O futuro que queremos não se constrói apenas com planos — ele começa com escolhas. E diante das enchentes no Rio Grande do Sul, o Sicredi em nível nacional se uniu em apoio aos associados e comunidades atingidas. Mais do que uma resposta emergencial, foi reafirmar um posicionamento claro sobre o tipo de sociedade que queremos construir. Uma sociedade próspera, onde a cooperação seja o instrumento de conexão entre pessoas, empresas, poder público e demais entes sociais presentes nas localidades.

Em meio ao caos, fomos ao encontro de quem precisava. Agimos com empatia, estratégia e coragem. Cada gesto e recurso mobilizado, foi uma afirmação de que é possível fazer diferente. Reafirmamos, com ações concretas, nosso compromisso com um Brasil mais justo, resiliente e sustentável — onde empresas não apenas doam, mas se envolvem, se responsabilizam e se transformam junto com as comunidades. Porque aqui no Sicredi não é só dinheiro, é ter com quem contar.

A filantropia como chave para resposta às tragédias anunciadas

Artigo publicado originalmente no Nexo Jornal, em 12/03/2025

Por Karine Ruy (Fundação Gerações) e Paula Jancso Fabiani (IDIS)

As águas de janeiro voltam a inundar os noticiários e, infelizmente, as cidades e casas de centenas de milhares de brasileiros. Em 2021, as enchentes atingiram o Sul da Bahia; no ano passado, Porto Alegre; e, 2025 começa com o litoral paulista e tantas outras regiões enfrentando a mesma realidade.

De um lado, há a abundância de água; do outro, a escassez. Mesmo a Amazônia, conhecida por sua exuberância hídrica, enfrentou secas severas, uma metáfora cruel que ilustra a falta de recursos financeiros destinados a emergências como essas. Em um cenário em que esses eventos climáticos extremos tornam-se cada vez mais recorrentes e potentes, evidenciando a vulnerabilidade de nossas comunidades, 750 mil brasileiros já foram obrigados a se deslocar por desastres naturais, seja por inundações, secas, deslizamentos etc. Em números totais, a quantidade de pessoas em deslocamentos por esse motivo no mundo já superava aquela causada por guerras, repressão e violência em 2023, segundo a Organização Internacional de Migrações (OIM).

É nesse contexto em que a cultura de doação se revela imprescindível. Fortalecer a filantropia é essencial para potencializar ações que apoiam diretamente os afetados pelas mudanças climáticas. As doações e o trabalho de OSCs (Organizações da Sociedade Civil) são, frequentemente, as primeiras respostas em momentos de crise.

A experiência recente no Rio Grande do Sul é um exemplo disso. Diversas OSCs mobilizaram-se rapidamente para arrecadar recursos e ajudar as famílias atingidas pelas enchentes. Vimos um pico de doações e uma mobilização histórica. Mesmo com sedes inundadas, as organizações coordenaram voluntários, distribuíram, com eficiência, doações, e arrecadaram recursos financeiros para mitigar danos.

Registro feito durante visita da Fundação Gerações ao Instituto Camélia, após as enchentes que atingiram Porto Alegre e região [Foto: Marcos Pereira Feição]

No entanto, essas ações também expõem desafios. Algumas organizações, por exemplo, não dispunham de voluntários suficientes para gerir o grande volume de doações, enquanto outras observaram uma queda acentuada no fluxo de recursos financeiros à medida que a tragédia saía dos holofotes da mídia. Por isso, o conhecimento do território e a capilaridade das organizações locais são essenciais para que os recursos cheguem, de forma eficiente, a quem mais precisa.

O modelo de atuação com foco territorial surge como uma solução sistêmica e perene para articular doadores e organizações locais. No Rio Grande do Sul, o Fundo Porto de Todos, criado pela Fundação Gerações, apoiou OSCs locais para que estas pudessem retomar suas atividades após as enchentes. Iniciativas semelhantes já foram realizadas em outras regiões, como o Fundo de Chuvas, em Florianópolis, criado pelo ICOM (Instituto Comunitário Grande Florianópolis), e o Fundo Brumadinho, gerido pela Associação Nossa Cidade, que demonstraram a eficácia desse tipo de estratégia.

Em nosso contexto climático, tragédias como essas, infelizmente, têm a tendência de se repetirem de forma cada vez mais intensa. Estar preparado para a próxima crise antes mesmo da atual se encerrar é fundamental. Diagnósticos territoriais e a capacidade de mobilizar recursos e ativos diversos de forma estruturada das FICs (Fundações Comunitárias e Institutos) locais são ferramentas indispensáveis para enfrentar emergências. Lideranças locais, com conhecimento territorial, desempenham, portanto, um papel crucial na distribuição eficiente de recursos.

A filantropia estratégica pode ser a chave para responder com agilidade e impacto às tragédias. Se deseja contribuir, doe para organizações locais, como Fundações e Institutos Comunitários. Sabemos que desastres  continuarão acontecendo. A diferença que podemos fazer é como reagimos a eles. Apoiar quem já está no território, com experiência e compromisso com a comunidade, é o melhor caminho para minimizar os efeitos devastadores das mudanças climáticas.

Nova edição da Pesquisa Doação Brasil contará com capítulo especial sobre a prática de doações em situações de emergência

A Pesquisa Doação Brasil tem como objetivo avaliar a percepção e a prática de doação dos brasileiros.

A próxima e quarta edição será lançada no ano que vem e refletirá o ano de 2024. Esta edição contará com um capítulo especial sobre a influência das doações emergenciais na cultura de doação.

Segundo o Panorama dos Desastres no Brasil, da Confederação Nacional de Municípios (CNM), entre 2013 e 2023, os desastres naturais causaram 2.667 mortes e afetaram milhões de pessoas em todo o país, resultando em prejuízos que chegam a R$ 639,4 bilhões. Com a crescente frequência de eventos climáticos extremos, como doa o brasileiro? E, passada a emergência, essas doações se tornam recorrentes? Essas são algumas das perguntas que buscamos responder.

 

Evolução do tema

A primeira edição da Pesquisa foi realizada em 2015, quando não havia qualquer dado sobre o comportamento do doador individual. A pesquisa nos permitiu identificar que 46% da população brasileira, naquele ano, havia feito alguma doação em dinheiro para organizações sociais, e a projeção do volume total doado por pessoas físicas foi de R$ 13,7 bilhões.

Desde então, consolidou-se como a principal fonte sobre este tema no país, permitindo identificar o perfil do doador, motivações, a causas preferidas, a percepção sobre as doações, as barreiras para a doação, entre outros aspectos que contribuem para compreendermos este cenário.

Lançamento do primeira edição da Pesquisa Doação Brasil, em 2015

Inicialmente prevista para ser realizada a cada cinco anos, a segunda edição aconteceu em 2020, coincidindo com o início da pandemia de Covid-19 e com o agravamento da crise socioeconômica, que já vinha afetando o país. Naquele ano, o volume total de doações caiu para R$ 10,3 bilhões e a participação da população também foi reduzida, posto que pessoas que antes doavam, passaram à categoria de beneficiários. Por outro lado, a percepção sobre a doação e o papel transformador das organizações sociais cresceu, apontando para o fortalecimento da cultura de doação.

Essas transformações levaram a um debate sobre a periodicidade da pesquisa. Os dados são fonte para a incidência do campo, para o debate sobre políticas públicas, para planejamentos de captação de recursos por organizações. A prática mostrou a importância de acompanharmos mais de perto a evolução, e trazer insights que contribuam para a tomada de decisão. Por isso, a partir da terceira edição, a Pesquisa Doação Brasil passou a ser bienal.

Em 2022, na terceira edição, 84% dos brasileiros acima de 18 anos e com rendimento familiar superior a um salário mínimo fizeram ao menos um tipo de doação, seja de dinheiro, bens ou tempo, na forma de voluntariado. A doação diretamente para ONGs e projetos socioambientais foi praticada por 36% dos respondentes, mantendo-se estável. A edição também trouxe um capítulo especial sobre a Geração Z.

A Pesquisa Doação Brasil é uma iniciativa do IDIS e da CAF – Charities Aid Foundation.

Deseja apoiar a realização deste estudo e contribuir para a Cultura de Doação no Brasil? Entre em contato via comunicacao@idis.org.br e saiba mais informações.

A transformação que 1% pode causar

*Por Paula Fabiani, CEO do IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social

O investimento social privado –  ato de destinação voluntária e estratégica de recursos em benefício da sociedade  – é fundamental para a resolução das profundas lacunas no desenvolvimento socioambiental do país. Embora o Estado desempenhe um importante papel, não tem jeito: há diversos desafios na hora de prover o necessário para o bem viver de todas e todos, seja pelas dimensões continentais ou pela enormidade das problemáticas do país que precisam de solução. E é aí que o investimento social privado pode e precisa agir: contribuindo com a redução das desigualdades e a mitigação dos danos ambientais. Somente com a colaboração entre o tripé governo, empresas e sociedade seremos capazes de endereçar soluções efetivas e perenes.

Quando tratamos de investimento social privado, estamos falando de R$4,8 bilhões em doações corporativas, ou seja, realizadas por empresas, de acordo com o Censo GIFE 2023. Valor significativo, mas ainda aquém do registrado em 2020, durante o auge da pandemia, quando as doações do setor privado ultrapassaram a marca de R$5,3 bilhões. O histórico dos números reforça que há capacidade do setor privado de investir mais – e melhor.

A partir dessa visão e inspirados pelo movimento estadunidense Pledge 1%, o IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social e o Instituto MOL lançaram no Brasil o Compromisso 1%.

Evento de lançamento do Compromisso 1% que aconteceu em São Paulo na sede da PwC Brasil.

O movimento tem o propósito de congregar empresas que já doam pelo menos 1% do seu lucro líquido anual, bem como aquelas que se comprometam a alcançar o patamar de doações em até dois anos. Cyrela, fama re.capital, Gaia Impacto, MOL Impacto, Pantys, PwC, RD Saúde e TozziniFreire Advogados são as primeiras signatárias do compromisso, que já conta com outras empresas em processo de adesão.

Destinado a empresas de todos os portes e segmentos, o Compromisso 1% tem como objetivo impulsionar o envolvimento das  empresas com o presente e futuro da sociedade, para que invistam em projetos e organizações que precisam de recursos para seguirem sua caminhada. São doações para organizações estruturantes que transformam a realidade das comunidades nas quais estão inseridos, seja por meio da educação, cultura, esporte, saúde ou de ações ambientais e de geração de renda.

Com o investimento social privado, as empresas só têm a ganhar. Além das vantagens financeiras, com mais facilidade de captar recursos no mercado, as empresas também melhoram sua reputação, com maior engajamento dos colaboradores e um relacionamento mais sólido com fornecedores e clientes. É um ecossistema que impacta positivamente todas as partes interessadas.

Criar possibilidades para o avanço do investimento social privado e estimular o hábito de doação no país é, sem dúvidas, um caminho para o fortalecimento da sociedade civil organizada como uma agente de transformações socioambientais positivas. Essa jornada só pode ser trilhada ao lado de pessoas e negócios que acreditam na potência mobilizadora e sustentável da filantropia estratégica e se comprometem com a geração de impacto positivo. Basta começar se comprometendo com 1%.

Afinal, é do agora a responsabilidade de reparar os erros do passado e construir o futuro para aqueles que virão.

 

Emergência e Resiliência: filantropia fortalecendo comunidades

Por Beatriz Barros, estagiária de projetos do IDIS

Investimento social é coisa de gente. Prevenção e cuidado também são coisas de gente. O 13º Fórum Brasileiro de Filantropos e Investidores Sociais, com o tema ‘Filantropia Entre Nós’, abordou na mesa ‘Emergência e Resiliência: filantropia fortalecendo comunidades’ a iminente crise climática e sanitária, discutindo como os fundos de emergência e as doações podem amenizar e antever possíveis desastres. A sessão contou com a presença de Giuliana Ortega (diretora de sustentabilidade da RaiaDrograsil), Karine Ruy (coordenadora geral da Fundação Gerações), Marijana Sevic (chefe de parcerias estratégicas internacionais da Charities Aid Foundation) e foi moderada por Vinicius Barrozo (analista de valor social na Globo e responsável pela plataforma de doações Para Quem Doar). 

Veja a sessão completa em:

 

A discussão sobre as recentes ações climáticas e sanitárias, além do crescimento de conflitos armados, evidenciam a urgência da criação de planos, estratégias e investimentos que sirvam para a prevenção de possíveis crises. Karine Ruy exemplificou a atuação da Fundação Gerações, organização participante do Programa Transformando Territórios, nas enchentes do Rio Grande do Sul, com a criação da linha emergencial do Fundo Comunitário Porto de Todos. Ela enfatizou a importância de ouvir as demandas da comunidade para a reconstrução e mitigação de riscos, como diz em sua fala: 

“Nós entendemos que o nosso papel, naquele momento, era de uma organização articuladora, fazendo pontes entre os atores do ecossistema que tinham essa capacidade operacional, mas, principalmente, identificando – a partir de uma escuta muito cuidadosa – quais eram as demandas das comunidades e territórios”, disse. 

Outro ponto relevante foi a atuação da Charities Aid Foundation (CAF) em países como Ucrânia e Marrocos, que enfrentaram emergências distintas: um conflito armado e outro por terremoto. Marijana Sevic comentou sobre a exigência das doações, nesses casos, serem rápidas e atingirem as demandas de forma eficaz e segura, atividade que a CAF tem expertise, atuando em mais de 170 países. 

A pandemia de COVID-19 também foi um dos destaques. Giuliana Ortega compartilhou as ações da RaiaDrogasil, que criou um fundo de investimento em parceria com o IDIS para oferecer infraestrutura a hospitais de pequeno e médio porte durante a pandemia, garantindo que essas estruturas se mantivessem após o fim da crise. A empresa também apoiou a vacinação em massa em municípios por meio do Unidos pela Vacina. Essas ações levaram a RaiaDrogasil a refletir sobre a doação de recursos próprios e a elaborar sua Teoria de Mudança, como destacou Giuliana: 

“A partir de 2021, por política, a gente passa a investir 1% do nosso lucro líquido em ações para a saúde, nas comunidades e na sociedade. […] Então, a gente ganhou esse recurso adicional para pensar e a gente resolveu fazer a nossa Teoria de Mudança porque o recurso estava aumentando. A gente ia canalizar esse esforço e o nosso objetivo principal era a promoção da saúde”.

 

Ainda nessa pauta, Vinicius Barrozo apresentou a plataforma Para Quem Doar, que teve uma relevante função na centralização e direcionamento de doações no período de pandemia e nas enchentes do Rio Grande do Sul. O aplicativo conecta doadores e organizações de forma simples e segura. Para incentivar a cultura da doação, foi anunciada a parceria entre Globo, IDIS e Instituto MOL na campanha do ‘Descubra sua Causa’, um teste inserido na plataforma Para Quem Doar que ajuda o doador a identificar áreas alinhadas com seus valores e convicções.  

No entanto, ainda existem reflexões que permanecem com ‘pontas soltas’ entre alguns nós, como a falta de engajamento em doações e o adiamento do planejamento e criação de linhas emergenciais para crises climáticas e sanitárias. É fundamental incentivar uma cultura de doação que vá além dos desastres; ter uma visão estratégica para o período de reconstrução a médio e longo prazo, quando a comoção inicial diminui e, consequentemente, o investimento; promover a diversificação de investimentos; e destacar o papel crucial da comunicação em emergências, anunciando de forma clara e cativante o propósito da doação. Esses caminhos podem ajudar a desatar algumas resistências e fortalecer propósitos e estratégias.

 

Fotos: André Porto e Caio Graça/IDIS.