Valoração do impacto social impulsiona o “S” do ESG

Texto publicado originalmente no Valor Econômico

Neste artigo, Denise Carvalho, gerente do IDIS, defende que a mensuração das ações relacionadas ao pilar Social da agenda ESG traz materialidade aos resultados e contribui para narrativas do verdadeiro impacto a longo prazo

Por Denise Carvalho, gerente sênior de monitoramento e avaliação do IDIS

Na sopa de letrinhas do mundo corporativo, o ESG já é uma unanimidade para avaliar e validar se uma empresa é socialmente consciente, sustentável e com boa governança. São critérios corroborados por metodologias de mensuração de impacto que apontam boas empresas para se investir. Afinal, o ESG está diretamente ligado à sustentabilidade – aqui relacionado à própria viabilidade de existência e geração de lucros dos negócios.

Migrando para o cenário dos investidores sociais, no qual o lucro não é o objetivo fim, o ESG é uma bússola que direciona a atuação estratégica das organizações e abre portas para mensurar o impacto que os projetos desenvolvidos geram nas comunidades atendidas. Mas, como saber se o impacto positivo justifica os investimentos envolvidos?

A mensuração de impacto ambiental, por exemplo, promove diversas relações: quantos hectares deixaram de ser desmatados, quantos gases causadores do efeito estufa deixaram de ser emitidos, quais corpos hídricos foram despoluídos, quantos resíduos deixaram de ser gerados. No social, entretanto, a conta pode ser um pouco diferente.

Um dos principais obstáculos enfrentados pelos investidores sociais, conforme o próprio ecossistema destaca, é a obtenção de dados de qualidade relacionados ao pilar social da Agenda ESG. Esta percepção foi corroborada pela pesquisa global ESG Global Survey 2023, conduzida pelo BNP Paribas, na qual 71% dos entrevistados apontaram a mensuração dos resultados como a maior preocupação dos investidores. Esta agenda é vista como elemento norteador para as organizações em direção a práticas mais responsáveis, mas, ainda assim, persiste o desafio da padronização e consistência dos dados, particularmente no âmbito social.

Atualmente, as metodologias de avaliação de impacto são capazes de medir, de forma rigorosa, os resultados gerados pelas ações dos projetos sociais. Essas metodologias proporcionam uma análise minuciosa e fundamentada sobre como as atividades de uma organização influenciam pessoas, comunidades e o meio ambiente, buscando compreender a extensão e os efeitos de suas ações, programas e projetos.

Uma avaliação de impacto não se limita a estudar o “o quê”, mas também medir “o quanto”, o “porquê” e o “como” as mudanças ocorrem. Uma vez que as avaliações de impacto estão sempre baseadas em dados e podem apresentar informações em uma linguagem comum, a comunicação dessas análises podem trazer grande visibilidade para a própria organização, além de enriquecer o debate da agenda ESG no mundo corporativo.

Algumas empresas e organizações já reconhecem o potencial das avaliações de impacto como aliadas da Agenda ESG. A Petrobras, por exemplo, vem realizando análises rigorosas em seus diversos projetos sociais e ambientais como parte de seu compromisso com a pauta. Para isso, a empresa iniciou um trabalho de diagnóstico e harmonização de indicadores alinhados com sua estratégia socioambiental, o que permitiu uma identificação mais clara do impacto nas comunidades nas quais opera. Os dados, utilizados com inteligência, permitem o direcionamento estratégico das ações e a ampliação do impacto positivo dos projetos.

Outro aspecto para ficar de olho quando se fala em mensuração dos impactos sociais é a adoção de ferramentas como Inteligência Artificial e blockchain como aliados deste processo, visando garantir ainda mais transparência para os investidores sociais. A natureza descentralizada do blockchain, por exemplo, impede eventuais manipulações de dados, o que aumenta a credibilidade dos relatórios de impacto. Isso permite que os investidores avaliem os resultados socioeconômicos dos projetos financiados de forma mais precisa, segura e eficiente. A fintech Moeda Seeds e a plataforma Banqu são exemplos de organizações que têm realizado trabalho com o apoio dessas ferramentas para aumentar a credibilidade dos dados apresentados.

É por meio da materialização do impacto que os gestores são municiados de dados que permitem a atuação estratégica das organizações, relacionando o valor investido com o retorno social dos projetos. O antídoto para os famosos “washing”.

A avaliação de impacto é fundamental para estabelecer um alicerce sólido para o sucesso sustentável das organizações. Ela transcende a mera medição e se torna um guia estratégico, orientando as empresas em direção a caminhos mais alinhados à agenda ESG. Embora realizar avaliações de impacto possa ser algo desafiador, os benefícios que ela oferece superam, de longe, os possíveis obstáculos.

Uma Máquina do tempo para o Brasil – Banheiros Mudam Vidas

A pesquisa Banheiros Mudam Vidas, promovida pela Kimberly-Clark, aborda a percepção sobre saneamento básico no Brasil. O projeto integra a estratégia de investimento social privado da marca, que tem como causa o acesso à água potável e saneamento no Brasil. Hoje, há quase 100 milhões de brasileiros que não possuem coleta de esgoto, mostrando a urgência do tema.

Paula Fabiani, CEO do IDIS, contribuiu para este projeto com um artigo analisando os achados. Se por um lado nos vemos diante de um problema complexo, por outro é animador ver que a população o considera importante e entende que todos, não apenas o poder público, podem fazer algo para mudar esse cenário.

Leia o artigo na íntegra:

Uma Máquina do tempo para o Brasil

Quando pensamos no século XIX, imaginamos mulheres de vestidos longos, bondes pelas ruas e música tocada pelos modernos gramofones. Tudo bem diferente do que vivemos hoje. Mas, a verdade é que nem tudo mudou para todos. Muitos brasileiros ainda convivem com uma realidade bem próxima do século antepassado. E não são poucos. Mais de 4 milhões de brasileiros não têm banheiros em suas casas, mais de 34 milhões não têm acesso à água potável e quase 100 milhões não contam com coleta e tratamento de esgoto¹. Todas essas carências são ligadas a uma só questão, a falta de saneamento básico. Os serviços de tratamento de água e esgoto são invisíveis para muitas pessoas, porque correm embaixo da terra, mas os problemas que sua ausência traz, saltam aos olhos de qualquer um.

− Doenças: pessoas que convivem com esgoto a céu aberto contraem diversas doenças, tais como diarreia, dengue e hepatite.
− Baixo rendimento escolar: crianças com problemas de saúde têm dificuldade para aprender e, frequentemente, abandonam a escola.
− Poluição: esgoto não tratado contamina o solo e deságua nos rios, poluindo as águas.
− Enchentes: o acúmulo de esgoto e lixo entope os bueiros e as águas das chuvas não são drenadas.
− Desigualdade social: pessoas que vivem sem saneamento básico aprendem menos, adoecem mais e têm renda mais baixa.

Por todos esses motivos, o acesso universal ao saneamento básico tem um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU só para ele. É o Objetivo número seis e todos podemos colaborar para que o Brasil consiga cumprir a meta até 2030. Talvez você esteja pensando que um indivíduo sozinho não pode fazer nada, mas não é verdade. Qualquer um pode fazer, e muito. Pode fazer como doador, procurando uma organização social que trabalhe pela ampliação do saneamento básico no País e contribuindo com ela. Se você puder doar recursos financeiros, ajuda muito. E se conseguir também doar trabalho voluntário, vai ajudar ainda mais.

Pode fazer como consumidor, preferindo adquirir produtos de empresas que destinem investimento social privado para a melhoria do saneamento básico no Brasil. Pode fazer como cidadão, ao escolher e acompanhar o trabalho de lideranças comprometidas em destinar recursos para o saneamento básico. E pode fazer como ser humano, preocupando-se com o assunto, se informando, conversando com os amigos e colaborando para que mais pessoas se importem com esse problema. São várias formas de ajudar o País a sair do século XIX e construir um século XXI mais justo para todos.

 

Onde você pode se informar mais

Blog do Instituto Trata Brasil: Mantido pela ONG cuja missão é contribuir para a melhoria da saúde da população e a proteção dos recursos hídricos do país através da universalização do acesso aos serviços de água tratada, coleta e tratamento dos esgotos.

Blog Saneamento em Pauta: Mantido pela BRK Ambiental, empresa canadense de saneamento que atua no Brasil.

Portal do Saneamento Básico: Site com notícias sobre saneamento básico

Onde você pode descobrir a sua causa e encontrar organizações sem fins lucrativos que trabalhem com saneamento:

Descubra Sua Causa: Teste desenvolvido pelo IDIS, que ajuda a identificar sua causa e encontrar organizações que atuam nas suas áreas de interesse.

Atados: Portal que reúne organizações que necessitam de voluntários. É possível procurar por área de atuação.

Instituto Democracia e Sustentabilidade: Organização de interesse público que conta com parceiros e redes da sociedade civil organizada para fomentar soluções. Entende que a política e a participação cidadã democrática são imprescindíveis para alcançar a sustentabilidade. Banheiros Mudam Vidas.

¹ SNIS 2019

Paula Fabiani, CEO do IDIS

Artigo originalmente publicado no site www.banheirosmudamvidas.com.br

5 razões para as empresas continuarem doando

Dois anos após a chegada da pandemia da Covid-19 ao Brasil, sabemos que ela transformou para sempre nossa realidade e trouxe muito sofrimento, mas também provocou uma onda inédita de solidariedade e doações.

O Monitor das Doações, desenvolvido pela ABCR (Associação Brasileira dos Captadores de Recursos), registra R$ 7,1 bilhões em doações para o combate à pandemia, sendo que 85% desse montante foi aportado por empresas.

Contudo, os recursos não vieram de forma uniforme ao longo do tempo. No final de 2020, o totalizador já indicava R$ 6,5 bilhões. Ou seja, durante boa parte do ano de 2021, foram reportadas doações de apenas 10% do volume de 2020, mesmo com as condições da pandemia no Brasil voltando a piorar de forma drástica, o auxílio emergencial do governo federal reduzido a um quarto do valor inicial e muitas organizações reportando queda nas doações recebidas.

A cultura de doação iniciada em 2020 não pode ser passageira, afinal temos uma série de desafios pela frente. Por isso, indicamos cinco razões para que as empresas continuem doando agora e nos próximos anos, fazendo disso uma cultura.

1. Consumidores preferem empresas que doam e se posicionam sobre questões sociais

Um primeiro fato a se destacar é que os consumidores querem comprar de empresas engajadas e olham positivamente para empresas que doam para organizações sociais.

Sete em cada dez brasileiros (71%) afirmam que estariam mais inclinados a comprar um produto ou serviço de uma empresa que doa a causas sociais ou que apoia sua comunidade local.

As mulheres, em especial, são mais propensas a levar isso em consideração na hora da compra (77% contra 65% dos homens), segundo a Charities Aid Foundation e o IDIS divulgaram no Brazil Giving Report de 2020.

2. Suas futuras contratações também preferem empresas doadoras e engajadas

Segundo ponto: as pessoas querem trabalhar em empresas engajadas. Em tempos em que passamos por longos períodos de isolamento social e home office, é ainda mais importante fortalecer o vínculo entre a empresa e seus colaboradores. Mostrar preocupação com os problemas sociais do país e envolver os profissionais em iniciativas de doação podem ser excelentes formas de atrair e reter talentos.

O trabalho com propósito, principalmente diante de todo o cenário criado desde 2020, é uma demanda. Uma pesquisa global focada em trabalhadores, do IBM – Institute for Business Value, mostrou que quase a metade dos entrevistados (48%) aceitaria um salário mais baixo para trabalhar em empresas ambiental e socialmente responsáveis.

3. A população quer ser mais solidária e doar mais, mas não sabe como

Terceiro fator a ser levado em conta: a população quer ser mais solidária, mas não consegue colocar isso em prática. Como doar, para quem, onde?

Quase a totalidade dos brasileiros (96%) tem o desejo de ser mais solidária, mas pouco mais de um quarto (27%) concretiza essa vontade, especialmente porque não conhece formas e oportunidades.

As empresas, doando para organizações sociais, têm a chance de ajudar a canalizar essa imensa solidariedade e criar caminhos para que consumidores e colaboradores também possam doar. Comuniquem as doações realizadas. É preciso dar o exemplo a outras empresas e para indivíduos.

4. Parâmetros ESG

Em quarto lugar, destaco que cada vez mais as empresas são avaliadas de acordo com os parâmetros ESG (Environmental/Ambiental, Social e Governança). Doar reforça o S.

Inevitavelmente, o mercado brasileiro vai seguir a tendência de adotar critérios ESG para orientar os investidores. Fazer doações para projetos sociais e ambientais reafirma o posicionamento da empresa e também contribui para o seu desempenho.

Pesquisas indicam que empresas que doam e com melhores práticas em ESG colhem mais lucros no longo prazo, além do aumento de seu valor de mercado.

5. A democracia precisa da sociedade civil

E fecho reforçando que o livre mercado depende da democracia e a democracia depende de uma sociedade civil forte. As empresas quando doam e dão apoio às organizações da sociedade civil, podem ter um ambiente saudável para os negócios, pois elas defendem a democracia, a livre expressão e os direitos civis. Além disso, trabalham por uma sociedade mais forte e equilibrada, ou seja, uma estrutura melhor dentro da qual as empresas podem operar e prosperar.

Essas são apenas cinco de muitas razões pelas quais convocamos as empresas a readequarem definitivamente o padrão de investimento social que costumam praticar e assumir um compromisso com a solução dos crescentes problemas socioambientais que enfrentamos.

Subam a régua. Doem mais e melhor. Se não for pelo legítimo desejo de construir um Brasil mais justo e acolhedor para todos, que seja pela certeza de que todo Real doado voltará para a empresa na forma de admiração, valorização e resultados.

Saiba mais: cultura de doação

Este artigo foi publicado originalmente pela Folha de S. Paulo.

 

Construindo a Favela 3D: digna, digital e desenvolvida

O terceiro setor — representado por ONGs e empreendedores sociais — tem historicamente um papel fundamental na transformação sistêmica da vida da parcela mais pobre da população. Ele é ambicioso e inovador. Organizações como a Gerando Falcões têm eficiência, velocidade e capacidade de execução porque penetram onde o Estado não chega. No início da pandemia, por exemplo, o terceiro setor se fez presente na vida dos mais pobres semanas antes do governo. Enquanto o Estado tinha dificuldade para localizar os fantasmas brasileiros — quem não têm RG nem CPF — as ONGs sabiam onde eles estavam e os chamavam pelo nome.

Fundada em 2011 no Jardim Kemel, bairro periférico de Poá, na região metropolitana de São Paulo, a Falcões começou como uma iniciativa que oferecia atividades extracurriculares a crianças e adolescentes e cursos de qualificação profissional a jovens e adultos da região.

Dez anos depois, cresceu exponencialmente e se converteu numa aceleradora de desenvolvimento social, que apoia mais de cem líderes e organizações de favelas em 19 estados do Brasil.

O que ela quer, agora, é ainda maior, mas está longe de ser inviável: implementar a primeira Favela 3D — digna, digital e desenvolvida — do país. Trata-se de um projeto multissetorial, com participação do governo e da iniciativa privada, para dar autonomia social e financeira à Vila Itália, favela de São José do Rio Preto (SP). O Favela 3D vai atuar tanto no trabalho de base tradicional — construindo casas, regularizando o uso da área e melhorando a infraestrutura — quanto na criação de ferramentas sociais transformadoras, como programas de capacitação e empreendedorismo que deem soberania financeira aos moradores e tornem a comunidade autossustentável.

A ideia a médio e longo prazo é fazer da Vila Itália um projeto-piloto que possa ser replicado Brasil afora. Os 14 milhões de brasileiros que vivem em favelas estão habituados a ser ignorados pelo poder público, vistos como problema ou ter seu potencial desperdiçado por falta de oportunidades. Com o Favela 3D, eles passam a ser parte da solução, agentes ativos da própria emancipação.

O método para alcançar esse objetivo é o mesmo que consolidou a Gerando Falcões como uma das principais iniciativas sociais do país: localizar as lideranças capazes de gerar mudanças locais na quebrada, investir em treinamento e capacitação e acompanhar os resultados com afinco, usando sistemas como o SROI (sigla em inglês para Retorno Social do Investimento), que quantifica o impacto social em valores financeiros. Uma análise feita com apoio do IDIS mostrou que, a cada R$ 1 investido nas iniciativas avaliadas, R$ 3,50 são gerados na forma de benefício para a sociedade.

Foi identificado também que o investimento social da ONG “paga-se socialmente” (payback) já no segundo ano após o investimento, algo raro para a maioria de ativos financeiros disponíveis no mercado. É o melhor dos dois mundos: propósito e inovação, uma combinação de conhecimento da favela com o conhecimento das empresas que estão mudando o mercado.

São avaliações de impacto como essas que dão à Gerando Falcões a segurança de estar no caminho certo, justificando perante seus apoiadores e sociedade civil a relevância de seu Programa de Aceleração. É assim que essa expertise é levada aos quatro cantos do país, revolucionando a maneira como encaramos o urbanismo e o desenvolvimento social nas periferias brasileiras.

Olhar para trás, para o que foi realizado, identificar o que deu certo, o que poderia ter sido diferente e de fato avaliar exige tempo e dedicação. Mas é assim que conseguimos evoluir e dar escala ao que fazemos. E é reorganizando a forma como o dinheiro circula na favela e dando instrumentos aos seus moradores que o Brasil vai criar condições para quebrar o círculo vicioso da desigualdade, transformar os excluídos em cidadãos e fazer com que a miséria vire item de museu.

Edu Lyra e Nina Cheliga são, respectivamente, fundador e CEO e Diretora de Tecnologias Sociais da Gerando Falcões; Paula Fabiani e Felipe Insunza Groba são, respectivamente, CEO e Gerente de Projetos do IDIS. Este artigo foi publicado em uma versão reduzida no Exame.

Saiba mais sobre Avaliação de Impacto e SROI.

 

Cultura em chamas: o que aprendemos três anos após o incêndio do Museu Nacional

Cultura em chamas: o que aprendemos três anos após o incêndio do Museu Nacional

As chamas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, há 3 anos estampavam manchetes de jornais brasileiros e foram amplamente divulgadas pela mídia internacional. Desde então, presenciamos com tristeza outros focos de incêndio em aparelhos culturais, como no Museu de História Natural da UFMG, em 2020, ou no acervo da Cinemateca em julho deste ano, e as razões foram semelhantes: verba insuficiente para manutenção.

O que fazer para a história não se repetir? Em 2018, a resposta foi o fortalecimento de um movimento da sociedade civil pela regulamentação dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos no Brasil. Uma coalizão multissetorial, formada por mais de 70 organizações e liderada pelo IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, intercedeu em Brasília por este mecanismo que oferece maior possibilidade de sustentabilidade financeira a organizações e causas, incluindo a cultura, e conquistou, em janeiro do ano seguinte, a promulgação da Lei 13.800/19. Os fundos patrimoniais são uma resposta à falta de recursos para a manutenção de equipamentos culturais tão importantes para a preservação e divulgação da nossa história e cultura.

Um fundo patrimonial, ou endowment, permite que pessoas, empresas e filantropos doem recursos com a segurança de que serão bem geridos e bem aplicados. São investimentos de longo prazo, dos quais a organização beneficiada utiliza apenas os rendimentos, garantindo-lhe recursos perenes. Eles complementam verbas estatais ou aquelas advindas da atividade e captação da organização, e dão maior flexibilidade para investimento em manutenção, expansão ou resposta em casos emergenciais. Por exemplo, o Museu de História Nacional de Nova York, possui 28% da recursos de bilheteria, 25% de doações, 16% de fundos patrimoniais, 16% atividades auxiliares e 9% da prefeitura da cidade. As maiores universidades dos Estados Unidos, como Harvard, contam também com fundos patrimoniais bilionários. Lá, cerca de 35% dos ex-alunos contribuem com doações e os rendimentos representam mais de ⅓ do orçamento anual da Universidade. O Museu Nacional, por sua vez, tem 98% de seu orçamento dependente de verbas federais por meio da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e é diretamente afetado pela crise dos investimentos federais em cultura e educação.

A Lei 13.800 foi sem dúvida uma grande conquista, e desde então, vimos serem estruturados no Brasil o Fundo Patrimonial Rogerio Jonas Zylbersztajn, o Lumina, da Unicamp, o Fundo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre outros. Os exemplos na área cultural, entretanto, são poucos e ainda incipientes. Uma das razões é que os recursos advindos de Leis de Incentivo, como a Lei Rouanet, tão comuns nesta área, apesar de serem previstos na Lei para a doação a Fundos Patrimoniais, não estão ainda regulamentados pela Secretaria da Cultura, com o estabelecimento de orientações para a apresentação de projetos culturais. Dessa forma, as organizações da área da cultura não conseguem exercer o direito que lhes foi conferido pela Lei 13.800. Este é um dos pleitos da Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, afinal é um direito das organizações culturais, é preciso que as autoridades publiquem Instrução Normativa regulamentando este benefício.

A regulamentação é urgente para alavancar a criação ou a ampliação de Fundos Patrimoniais voltados à cultura, em especial neste momento de redução de gastos públicos e drástica diminuição de recursos a essa área. O fogo é histórico: em 1978 no MAM (RJ); 2013 no Memorial da América Latina; 2015 no Museu da Língua Portuguesa; 2016 na Cinemateca; 2018 no Museu Nacional; 2020 no Museu de História Natural da UFMG; e 2021 novamente na Cinemateca. Que das cinzas de tantas memórias e história possam surgir novas formas de cuidarmos de forma sustentável de nossa cultura enquanto sociedade, para que ela perdure e seja de todos e para todos.

Por Paula Fabiani, CEO do IDIS e Priscila Pasqualin, sócia do PLKC Advogados.

Este artigo foi publicado originalmente no Estadão.

Fortalecimento dos Fundos Patrimoniais | Valor Econômico

Precisamos valorizar instituições públicas e privadas, sem fins lucrativos, que trabalham para causas de interesse público

Por Paula Fabini e Priscila Pasqualin, do PLKC Advogados*

Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos tem trabalhado ativamente para a criação e fortalecimento no Brasil dessa estrutura, também conhecida como Endowment, tão difundida em países desenvolvidos.

Em janeiro de 2019 tivemos a aprovação do marco legal desse mecanismo, mas para que os Endowments se popularizem por aqui, ainda precisamos aprimorar a legislação. Mas, porque os Endowments são importantes para o Brasil?

Os Endowments, ou Fundos Patrimoniais, são formados principalmente por doações feitas por pessoas jurídicas ou físicas, podendo ter algumas fontes alternativas de recursos. Esse conjunto de ativos são aplicados para produzir rendimentos a serem destinados exclusivamente para causas de interesse público.

Depois de doados, ou seja, de estarem incorporados ao Fundo Patrimonial, a titularidade dos ativos passa para uma organização gestora do Fundo Patrimonial, que tem o dever de gerir esses ativos, com dois objetivos: mantê-los íntegros e perenes, no longo prazo, e gerar rendimentos para uso no curto prazo.

Os Fundos Patrimoniais beneficiam diretamente as instituições apoiadas, públicas ou privadas sem fins lucrativos, que, assim, alcançam outro patamar de sustentabilidade financeira para realizar seus programas, projetos ou iniciativas. Por meio dessas organizações socioambientais, os recursos chegam aos beneficiários, ou seja, todas as pessoas e territórios que têm a oportunidade de receber serviços de interesse público com maior qualidade, dada a melhoria da sustentabilidade financeira que o Fundo Patrimonial proporciona.

Além disso, mundo afora, os Endowments são investidores profissionais, pois têm um mandato de extrema importância: gerir um patrimônio privado, legado pela sociedade, em prol de relevantes interesses públicos. Em outros países são investidores tão relevantes quanto os fundos soberanos, os fundos de pensão e os grandes fundos de investimento. E, como tal, também são responsáveis por desenvolver o mercado financeiro, gerando recursos para empresas e empreendimentos, com a paciência e capacidade de tomar risco que só um investidor de longo prazo consegue ter.

No exterior, as universidades, hospitais, centros de pesquisa e instituições culturais e de patrimônio histórico, entre outros, são mantidas, em parte, por Endowments. Além das grandes fundações como a Bill & Melinda Gates Foundation, a Rockefeller Foundation e a Ford Foundation.

Aqui no Brasil, desde a regulamentação dos Endowments, vários fundos foram ou estão em processo de constituição. Alguns exemplos são o Fundo Patrimonial da Unicamp (Fundo Patrimonial Lumina) e o Fundo Rogério Jonas Zylbersztajn.

A Lei dos Fundo Patrimoniais – a Lei 13.800/19 – trouxe benefício fiscal apenas para a área da cultura, que ainda não foi regulamentado pelo governo. No Brasil, tributamos a doação filantrópica e as aplicações financeiras pelo imposto de renda para a maioria das instituições, o que não acontece no exterior. Nos Estados Unidos o incentivo fiscal é bem mais favorável e faz o dinheiro fluir para Endowments, ainda que sem muita convicção ou intencionalidade imediata do doador.

O surgimento de novos Fundos Patrimoniais Filantrópicos no Brasil mostra ainda mais o nosso valor como sociedade, e o potencial de crescimento que esse mercado possui se o governo reduzir um pouco a hostilidade tributária em nosso país.

Precisamos que a legislação exonere os Endowments do imposto sobre doações (o ITCMD) – cuja incidência é vexatória quando se fala de doação filantrópica para causas de interesse público.

Precisamos que a tributação reconheça que os Endowments em prol de instituições públicas e de causas de educação, saúde e assistência social fazem jus à imunidade já prevista na Constituição, ainda que não sejam eles, diretamente, os estabelecimentos públicos ou de atendimento à população.

Precisamos ampliar a isenção do Imposto de Renda sobre aplicações financeiras dos Endowments, para que possam destinar mais recursos às instituições públicas ou privadas, sem fins lucrativos, apoiadas. E seria um grande impulsionador para o surgimento de novos Endowments, a criação de incentivos fiscais para os doadores, que deveriam poder abater de seu imposto de renda, as doações feitas para essa estrutura, que só traz benefícios para o país.

Essas são as principais batalhas da Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos para promover o aumento do número de Fundos Patrimoniais brasileiros. A sociedade deve se apropriar dessa estrutura. Nós, como cidadãos, precisamos valorizar nossas instituições públicas e privadas, sem fins lucrativos, que trabalham para causas de interesse público, tomando a responsabilidade para si  de fortalecê-las.

Empresas públicas não vinculadas e as de economia mista, assim como os órgãos públicos, promotores e juízes que determinam a destinação de recursos em termos de ajuste de conduta e acordos de leniência, poderiam construir estratégias de incentivo à criação de Endowments, oferecendo, por exemplo, parte destes recursos para instituições apoiadas ou Endowments que captarem recursos para sua formação (realizando o matching das captações realizadas).

Os Endowments fortalecerão a sociedade e economia. Seu estímulo é estratégico para o esforço de nossa recuperação e crescimento, e deveria ser uma prioridade. A lei já trouxe instrumentos que permitem a aplicação de recursos no curto, médio e longo prazo. Agora precisamos fazer uso deste poderoso mecanismo de apoio a causas públicas.

*Artigo publicado originalmente no Valor Econômico no dia 8 de fevereiro de 2021