A Lei nº. 13.800, de 4 de janeiro de 2019, estabeleceu a regulamentação para a criação de fundos patrimoniais (endowments) no país. Algumas instituições públicas e privadas foram precursoras na estruturação de seus fundos patrimoniais filantrópicos, sendo que a maioria delas contou (ou está contando) com o apoio do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) nesse processo. Assim, nesse espaço compartilhamos os aprendizados desses meses desde a aprovação da Lei, com o objetivo de ajudar grantmakers e investidores sociais que ainda buscam compreender as oportunidades e desafios de criarem seus próprios fundos patrimoniais.
Os fundos patrimoniais (ou endowments) são um caminho para a sustentabilidade de longo prazo de organizações sem fins lucrativos e universidades. São estruturas destinadas a realizar a gestão de um conjunto de ativos formado por doações filantrópicas, cuja aplicação financeira gera recursos para apoiar causas de interesse público, como a educação, a saúde, a cultura e o meio ambiente. Para garantir a perpetuidade, objetivo da maioria dos fundos patrimoniais ao redor do mundo, sua estrutura deve prever a preservação do valor principal, composto pelas doações recebidas. Assim, somente o rendimento real (descontada a inflação) resultante do investimento deste conjunto de doações poderá ser utilizado, garantindo o objetivo de perpetuidade do fundo.
Os endowments podem ser criados em benefício de uma instituição, como o Harvard Endowment (um dos maiores e mais conhecidos fundos patrimoniais universitários do mundo), ou em favor de uma causa social específica como o da Rockefeller Foundation (que destina seus recursos para o bem-estar social e populações vulneráveis). A forma de constituição e regras de funcionamento dos endowments variam de acordo com a legislação de cada país, mas em todo o mundo são instituídos como entidades sem fins lucrativos.
No Brasil, alguns importantes fundos patrimoniais surgiram ainda antes da regulamentação, a partir dos anos 1950, entre eles o da Fundação Bradesco (1956), da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (1965), do Instituto Unibanco (1982) e da Fundação Itaú Social (1993). Esses fundos patrimoniais compartilham o objetivo de se tornar o legado de um investidor social privado (familiar, empresarial ou ambos) assim como fizeram Bill e Melinda Gates e a família proprietária da empresa Ford, com a criação de seus endowments.
Não gera surpresa, então, que o primeiro fundo patrimonial filantrópico instituído após a promulgação da Lei 13.800/19 seja de origem familiar: o Fundo Rogério Jonas Zylbersztajn, criado por Raikel Zylbersztajn, em memória de seu filho, com a finalidade de “fomentar e promover causas de interesse público, voltadas para a população em geral”. No entanto, a aprovação da Lei dos Fundos Patrimoniais vem impulsionando mais a formação desta estrutura por outros grupos de atores sociais.
A movimentação em torno da criação de novos endowments no país não vem sendo liderada por investidores sociais familiares pensando em seu legado (como é comum em outras partes do mundo), mas por instituições públicas e privadas buscando fortalecer sua própria sustentabilidade financeira por meio de um instrumento de diversificação de suas fontes de recursos. A Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) se lançaram no desafio de criar seus fundos patrimoniais. Outras universidades e instituições da área da cultura como o Museu de Arte do Rio também estão nessa trajetória.
Questões tributárias podem justificar uma menor movimentação por parte dos investidores sociais familiares, uma vez que não há incentivos fiscais à doação em vida de grandes fortunas (como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos). Entretanto, questões culturais também parecem ter relevância no debate em torno da constituição de grandes fundos patrimoniais filantrópicos familiares no Brasil.
Investidores sociais privados familiares, aparentemente, receiam a perda de controle sobre a gestão financeira dos recursos de sua atuação filantrópica, uma vez instituído um fundo patrimonial sob as regras da Lei 13.800/19. Além disso, a preocupação com o legado filantrópico ainda é tema pouco difundido em nossa sociedade.
Essas questões podem seguir trajetória semelhante à onda de profissionalização de empresas familiares, que aconteceu em décadas anteriores no Brasil. Muitas famílias equacionaram os desafios do legado e sucessão em seus negócios, por meio da profissionalização. Entretanto, o mesmo ainda não ocorreu em relação ao legado e sucessão na filantropia, o que coloca o destino de programas e projetos socioambientais bastante consolidados nas mãos de novas gerações, cujas motivações e interesses filantrópicos muitas vezes não convergem com os da geração anterior.
Poucas famílias nos abordaram para discutir a estruturação de fundos patrimoniais visando o planejamento do legado e sucessão na filantropia familiar. Porém, assim como ocorreu no âmbito empresarial nas últimas décadas, as famílias paulatinamente estão percebendo a importância desse instrumento para profissionalização de sua filantropia e garantia da perpetuidade do apoio a uma causa ou organização da sociedade civil.
A Lei 13.800/19 buscou endereçar essas questões de perpetuidade, o fundo patrimonial na Lei brasileira é estruturado para perdurar no longo prazo. E também buscou endereçar a profissionalização da gestão. Mas alguns destes aspectos ainda permanecem como desafios na formação de fundos patrimoniais no Brasil, em especial a governança e a mobilização de recursos.
Com normas de proteção ao patrimônio e seguindo princípios de boa governança, a Lei dos Fundos Patrimoniais propõe a seguinte estrutura: uma organização gestora do fundo patrimonial (OGFP), instituída na forma de associação ou fundação, capta e gere doações e o patrimônio acumulado; aplicando os ativos no mercado e resgatando somente rendimentos líquidos de inflação, que são destinados a uma (ou mais) causa ou instituição apoiada.
A legislação determina a segregação contábil, administrativa e financeira do patrimônio do fundo patrimonial e da instituição apoiada. Isso evita que problemas financeiros, trabalhistas, fiscais ou outros, ocorridos na instituição apoiada, venham a afetar os ativos do fundo patrimonial.
A gestão desses ativos é orientada por políticas de investimento, resgate e utilização de recursos, desenhadas por um órgão consultivo e aprovadas pelo órgão deliberativo da OGFP, seu Conselho de Administração.
A Lei 13.800/19 determina parâmetros específicos para a governança da OGFP. Esses parâmetros são baseados nas melhores práticas do tema e representam um importante desafio na estruturação de fundos patrimoniais filantrópicos no Brasil, principalmente àqueles destinados a apoiar com exclusividade uma instituição pública ou privada.
Nesses casos, a instituição pública ou privada que recebe os recursos do fundo patrimonial tem um assento garantido no Conselho de Administração da OGFP, para endereçar maior garantia de autonomia programática.
O receio da perda da autonomia programática por parte dos gestores de instituições apoiadas exclusivas tem sido recorrente em diversos dos casos que acompanhamos. Porém, vale reforçar que um fundo patrimonial (e uma OGFP) vinculado a uma instituição apoiada exclusiva existe para ajudar a instituição a desenvolver sua causa, e não o contrário. Em nenhum momento a OGFP deveria interferir na estratégia, programas e projetos desenvolvidos pela instituição apoiada para o cumprimento de suas finalidades socioambientais.
É claro que nada impede que os órgãos de governança da OGFP contem com mais de um membro indicado pela sua instituição apoiada exclusiva. Na realidade essa medida pode agilizar a conformação desses órgãos e a criação da OGFP. Deve-se, no entanto, considerar os seguintes fatores:
Diferença de perfil dos conselheiros das duas organizações
A instituição apoiada pode ter excelentes conselheiros, que muito contribuem para as definições estratégias que fomentam o avanço de sua causa. Infelizmente, esses mesmos conselheiros podem não ser os mais indicados para apoiar a finalidade da OGFP de captar, gerir e destinar recursos para a instituição apoiada. Recomenda-se para os fundos patrimoniais a composição de uma governança diversa, capaz de promover uma boa gestão técnica dos recursos e, simultaneamente, atrair doações para o crescimento do fundo patrimonial.
Transparência. É preciso garantir que o sistema de “checks and balances” (freios e contrapesos) e a robustez da prestação de contas não sejam comprometidos quando há grande coincidência entre os órgãos de governança da OGFP e sua instituição apoiada exclusiva. Além disso, deve-se atentar aos potenciais conflitos de interesses que podem surgir a partir dessa sobreposição.
Aspectos legais de instituições apoiadas públicas exclusivas. A composição dos órgãos de governança de OGFPs de instituições públicas com muitos membros da instituição pública apoiada pode caracterizar um ambiente de órgão público, ao passo que a OGFP deve, obrigatoriamente, ser uma organização de caráter privado (ainda que apoie de forma exclusiva uma instituição pública).
Participação dos doadores e outros stakeholders. É importante abrir espaço para a participação de outros stakeholders na governança do fundo patrimonial, além daqueles ligados à instituição apoiada. Não endereçar esta questão pode prejudicar a legitimidade da OGFP e sua consequente capacidade de captar recursos em nome da instituição apoiada exclusiva.
Importante lembrar que uma governança bem estruturada, baseada nas melhores práticas, reforça o compromisso com a causa, inspira segurança e atrai parceiros e investidores. Aliás, também ajuda a potencializar a captação de recursos, grande desafio não somente à estruturação de fundos patrimoniais filantrópicos, mas também às organizações sem fins lucrativos em geral.
O legado ou herança, por exemplo, é uma fonte relevante de recursos para fundos patrimoniais filantrópicos ao redor do mundo. Entretanto, ainda não vemos muitas heranças direcionadas de forma organizada a causas filantrópicas, ou endowments criados para dar continuidade a um investimento social familiar.
O Brasil ainda precisa aumentar e amadurecer sua Cultura de Doação. Entretanto, o crescimento significativo de doações devido à pandemia da Covid-19 mostrou o potencial filantrópico do país, que pode perdurar com mecanismos confiáveis e transparentes para o estabelecimento de relações duradouras entre doadores e beneficiados. Nesse sentido, possuir um plano de mobilização de recursos estruturado é fundamental para uma instituição que busca atrair recursos, em especial se tratando de recursos para um fundo patrimonial.
Outro caminho importante para a atração de recursos para os fundos patrimoniais filantrópicos no Brasil são as chamadas ‘receitas não tradicionais’, como, por exemplo, doações decorrentes de obrigação assumida em termos de ajuste de conduta, acordos de leniência e colaboração premiada[1].
A ‘filantropização via privatização’, conceito criado pelo professor Lester Salamon, da Johns Hopkins University, propõe que parte dos valores advindos da privatização de empresas públicas seja destinada a fundos patrimoniais, formados para beneficiar causas da sociedade.
Também são fontes de recursos não tradicionais para os fundos patrimoniais filantrópicos as multas decorrentes de danos ao meio ambiente e ao patrimônio, e valores recuperados em ações de combate à corrupção, entre outros. Caminhos promissores não faltam, mas a implementação destas trilhas depende de ajustes na lei, superação de entraves burocráticos e atuação conjunta do Poder Público e da sociedade civil.
Como mencionamos, o desejo dos brasileiros de apoiar causas socioambientais vem crescendo. Em apenas dois meses após o início da pandemia do Covid-19, mais de R$ 5 bilhões foram doados por mais de 300 mil pessoas. Em pouco tempo, foram criadas diversas iniciativas para enfrentar o colapso na saúde e economia, como fundos emergenciais, que se propõem a dirimir os impactos da pandemia em diferentes setores[1].
Ainda é cedo para prever uma mudança de comportamento e um impacto de longo prazo na Cultura de Doação no país, mas esse movimento mais uma vez comprova que o brasileiro é solidário e que se mobiliza em torno de causas relevantes. Faltam mais estímulos, especialmente os incentivos fiscais. Pena que a Lei não endereçou de forma ampla essa questão, mas estamos diante da chance de exercer nosso papel social e atuar pela equidade e justiça socioambientais. Os fundos patrimoniais são certamente uma importante ferramenta para alavancar esse processo.
NOTA:
[1] Contanto que não haja transferência de recursos da Administração Pública aos fundos patrimoniais (art.13, §6º, cc art. 17, Lei nº. 13.800/19).
[2] Como o Fundo Emergencial para a Saúde, instituído pelo IDIS, pela BSocial e pelo Movimento Bem Maior, com o apoio de diversos parceiros.
PARA SABER MAIS
Leia mais sobre a atuação e saiba como se engajar na Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, entre em contato com comunicacao@idis.org.br.
Conheça nossa produção de conhecimento sobre Fundos Patrimoniais Filantrópicos:
Nota Técnica: Fundos Patrimoniais Filantrópicos
Fundos Patrimoniais Filantrópicos – Sustentabilidade para causas e organizações (IDIS)
Brazil’s New Endowment Law Could Strengthen Philanthropy and Democracy Around the Globe (Stanford Social Innovation Review)
Something amazing just happened in Brazilian politics (Alliance Magazine)
IDIS led an education and advocacy strategy to build support for an Endowment Law, capítulo publicado em Impact Case Studies: Promoting an enabling environment for philanthropy and civil society (Wings)
Eight-year long fight for new law in Brazil (Charities Aid Foundation CAF-UK)
Lei de Endowments pode transformar o Brasil (Capital Aberto)
Regulação de fundo patrimonial pode elevar doação de fortunas (Folha de S.Paulo)
O impacto da lei dos fundos patrimoniais (Gazeta do Povo)
Lei dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos completa 1 ano (IDIS)
Recursos não tradicionais para Fundos Patrimoniais de OSCs (IDIS)
Brumadinho: e depois da comoção? (IDIS)
A aprovação da lei dos Fundos Patrimoniais e sua repercussão (IDIS)
* Paula Fabiani é diretora-presidente do IDIS e Andrea Hanai, gerente de projetos no IDIS.
Artigo originalmente publicado na plataforma Grantlab, do Gife, em 19 de junho de 2020